Exame - Portugal - Edição 437 (2020-09)

(Antfer) #1
SETEMBRO 2020. EXAME. 87

A


notícia caiu como uma
bomba. Sem qualquer
aviso, Tom Nook en-
viou uma carta aos seus
clientes que deixou mui-
tos deles furiosos e a fazerem contas à
vida: um corte radical dos juros oferecidos
pelo seu banco. “Nunca serei capaz de re-
cuperar financeiramente disto”, queixou-
-se um utilizador do Reddit. “Agora, não
o hei de resgatar com os meus impostos”,
prometia outro. Talvez seja importante
dizer que as pessoas são avatares numa
ilha deserta fictícia e que Tom Nook é um
guaxinim animado. Estamos a falar de
Animal Crossing: New Horizons, o jogo
da Nintendo que se tornou uma das pe-
ças de entretenimento mais populares da
quarentena. Aquele corte de juros foi de-
batido em alguns fóruns da internet com a
paixão com que a Bloomberg discute uma
decisão do Banco Central Europeu (BCE).
De certa forma, segue uma lógica seme-
lhante e talvez tenha feito mais para aju-
dar muitos a perceberem como funciona


um banco central do que vários discursos
do anterior presidente, Mario Draghi. Os
videojogos têm esse poder de nos ajuda-
rem a perceber melhor ideias económicas
complexas ou as consequências de como
gerimos o nosso dinheiro. Mas nem sem-
pre esse poder é bem aproveitado.
Tal como na nossa vida de carne e
osso, na qual os bancos centrais têm co-
locado as taxas de juro em mínimos his-
tóricos, em Animal Crossing eles foram
cortados de uns já baixos 0,5% para 0,05
por cento. O objetivo foi desincentivar
uma batota usada por alguns jogadores
(colocavam dinheiro – virtual – no ban-
co, e adiantavam o relógio da consola para
receber logo os juros), mas também acaba
por servir como um incentivo para todos
gastarem mais e mais rápido. “O próxi-
mo passo lógico é o quantitative easing. É
essencial que os jogadores tentem ligar o
jogo à sua impressora para começarem a
imprimir dinheiro”, brincou um analista
no Financial Times.
Essa não é a única investida no jogo na
área económica. Embora seja apresenta-
do como uma utopia pastoral, de proxi-
midade à Natureza e longe das responsa-
bilidades e pressões do nosso dia a dia,
é complicado encontrar uma premissa
económica mais constrangedora do que

aquela com que somos confrontados no
início de Animal Crossing. Depois de te-
rem sido convencidos a viajar para uma
ilha deserta, os jogadores começam ime-
diatamente com uma dívida a Tom Nook.
Ela pode ser paga relativamente rápido,
começando a vender o que a Natureza nos
dá, mas isso é apenas o início do calvário
do endividamento. Uma das traves mes-
tras do jogo é a ampliação e decoração da
nossa casa. E cada operação dessas dei-
xa os jogadores com dívidas gigantes ao
nosso amigo Tom Nook. A mecânica do
jogo incentiva a que se trabalhe cada vez
mais e se explore a fundo os recursos da
ilha para poder amortizar o empréstimo
e, assim, pedir um novo crédito para au-
mentar novamente o tamanho da casa e
enchê-la com mais mobília inútil.
Embora não falte discussão acerca das
lições que os jogos nos ensinam sobre a
vida em sociedade, a História ou a Ciên-
cia, é mais raro encontrar uma reflexão
sobre o que eles nos dizem da gestão das
nossas finanças. O que é ainda mais es-
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