Exame - Portugal - Edição 437 (2020-09)

(Antfer) #1

Macro



  1. EXAME. SETEMBRO 2020


co com a ideia de que nos está a ser ensi-
nada alguma coisa? É um pouco essa a sua
originalidade. Um jogo para relaxar, mas
no qual não escapamos totalmente aos
constrangimentos da nossa vida: a pres-
são para consumir mais e ter uma casa
maior, impossível de alcançar sem ficar a
dever dinheiro ao banco, ao mesmo tem-
po que nos vão repetindo que temos de
fazer o que nos apetece e sermos felizes.
Bogost escrevia na Atlantic que, “com
as mortes provocadas pelo coronavírus a
dispararem e a economia real a afundar-
-se, o Animal Crossing pode inspirar os
norte-americanos a reclamarem por uma
estrutura e rotina e motivá-los a alcança-
rem fins mais modestos do que notáveis”.


ESTÚDIOS ESFREGAM AS MÃOS
O coronavírus foi um desastre para todo o
mundo, mas está a servir como uma mina
de ouro para a indústria dos videojogos. A
Nintendo viu os lucros operacionais au-
mentarem 428% no último trimestre, em
grande parte devido ao Animal Crossing,
que, desde março, já vendeu 22 milhões
de cópias. A faturação da Electronic Arts
também surpreendeu os analistas e a Epic
Games (responsável pelo Fortnite) con-
seguiu arrecadar 1,78 mil milhões de dó-
lares junto de investidores. As vendas de
jogos para a PlayStation dispararam 83%,
a maior parte compras digitais.
Além do Animal Crossing, os títulos
mais populares destes meses foram Call
of Duty, Final Fantasy VII, GTA V, Mario
Kart 8, Minecraft, NBA 2k20 e The Last
of Us. No total, os gastos com videojogos
aumentaram 30% nos EUA, entre abril e
junho, em comparação com o mesmo pe-
ríodo de 2019, conclui o NPD Group, su-
blinhando que já 3/4 da população nor-
te-americana jogam videojogos.


Fechados em casa para travar a pro-
gressão do vírus, este aumento seria de es-
perar. E são os próprios consumidores que
o reconhecem. Segundo a Nielsen, o nú-
mero de jogadores que dizem estar a jogar
mais tempo devido à pandemia aumentou
46%, entre março e junho nos EUA, 41%,
em França, e 28%, no Reino Unido.
Além do confinamento, o sentimento
generalizado de incerteza pode aumen-
tar a vontade de encontrar refúgio num
mundo fictício, onde embora a frustração
também exista, ela permite uma nova ten-
tativa, uma vida extra ou desligar a conso-
la furioso e ir beber uma cerveja. Mesmo
quando não carregamos nos botões sufi-
cientemente depressa, pelo menos pode-
mos estar mais descansados por termos o
comando nas mãos.
No meio de uma pandemia que apa-
nhou o mundo de surpresa, quando as
mortes se acumulam, milhões de pessoas
perdem o emprego e o simples ato de sair
à rua pode colocar a nossa vida e a dos ou-
tros em risco, andar às voltas numa ilha a
apanhar borboletas e construir uma mesa
de cabeceira de madeira pode ser um alí-
vio, mesmo que haja uma dívida a pagar.
Ou, nas palavras de Bogost, “Animal
Crossing oferece uma economia simula-
da, na qual não interessa aquilo que se
faz – é-se capaz de ter uma vida apelativa
e cativante, ainda que modesta”, avalia à
EXAME. “Pode acumular capital e melho-
rar a casa, endividar-se e colecionar bens


  • ou pode não fazer nada disso e apenas
    pescar e olhar para as estrelas. De qual-
    quer forma, a economia do jogo apoia-o.
    Não será expulso de casa. Ninguém lhe
    dirá que não cumpriu o seu potencial.
    Esse é um sonho que vale a pena sonhar,
    especialmente agora.” Pelo menos, até
    chegar uma nova carta do Tom Nook.E


A ECONOMIA
VIRTUAL
DE VAROUFAKIS

Empresas de videojogos
recorrem mais a economistas

Em 2012, Yanis Varoufakis apareceu
nas notícias, mas o tema não eram
as dificuldades financeiras gregas.
Aquele que, três anos mais tarde, seria
nomeado ministro das Finanças, tinha
sido contratado pela Valve, criadora
de jogos como Half-Life e Counter
Strike. A decisão foi a mais noticiada
de uma tendência que se intensificava:
economistas a analisarem economias
virtuais. Eyjólfur Gudmundsson, reitor
da Universidade de Akureyri, foi um
dos primeiros. Entre 2007 e 2014 foi
economista-chefe da CCP, empresa
islandesa responsável pelo jogo Eve
Online, em que monitorizava aquilo a
que chamava o “produto de utilizado-
res bruto” (o PIB da vida real), massa
monetária e inflação. Via a sua função
como uma espécie de banco central do
jogo, identificando problemas e ten-
dências. Na Valve, Varoufakis procurou
aplicar o seu conhecimento a questões
comerciais e cambiais que a empresa
começou a identificar quando as trocas
entre jogadores se intensificaram.
Estes ambientes são um paraíso de da-
dos, principalmente com a popularida-
de de multiplayers online com milhões
de utilizadores e milhões de interações,
todas elas registadas e quantificadas.
“É como ser omnisciente”, dizia Varou-
fakis à NPR. Um laboratório perfeito
para economistas. Ou, como dizia o
académico Edward Castronova: “Só
porque as pessoas fingem ser ogres ou
elfos, não significa que não continuam a
tomar decisões económicas racionais.”
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