A BO
Segund
7 de setemb
16 A Bola ao CENTRO
Futebol
Ao longo da carreira
que terminou no final
da última época, aos 37 anos,
o guarda-redes português —
campeão da Europa em 2016 —
participou em mais de 500 jo-
gos. Na Pedreira, palco de so-
nho do SC Braga, recebeu A
BOLA e A BOLA TV para recor-
dar um trajeto inesquecível.
Sempre junto à baliza, amiga
de uma vida.
«Agarrei-me à oportu
que tinha na minha vid
de ser alguém»
Q
UANDO olha para um
campo vazio como este e
recorda a carreira que teve
enquanto guarda-redes,
qual é o sentimento?
— Acima de tudo é o sentimen-
to de alguém que tudo fez para atin-
gir mais do que aquilo que sonhou,
quando comecei no Mirandela. Olho
com satisfação e com um orgulho
imenso por ter feito uma carreira
digna, honesta e por ter atingido o
que atingi. De ter conquistado o
que conquistei. Óbvio que sempre
gostamos de ganhar mais coisas,
mas dei tudo. Conquistei o que con-
quistei com o meu trabalho e a mi-
nha dedicação em prol da profissão
que amei desde sempre.
— Com tantas posições em cam-
po, por que razão quis sempre a ba-
liza?
— Não sei. Talvez por ser um pos-
to diferente. Um posto único. Todos
nós temos a noção do que é ser guar-
da-redes, mas estar na baliza e pas-
sar por ali... Só quem por lá passou
e viveu emoções de ter sido guarda-
-redes, de ter vivido as experiên-
cias de ser guarda-redes, de mo-
mentos bons e maus, momentos de
solidão, é que entende o que signi-
fica. Quando cometemos um erro e
sentimos que toda a gente tem os
olhos postos em nós. Quando resol-
vemos um jogo com uma grande de-
fesa e as pessoas olham para nós
achando que fizemos a nossa obri-
gação. O nosso sentimento é único.
Passamos por muitas emoções, que
são difíceis de explicar, mas que nos
dão uma realização fantástica e que
nos tornam diferentes dentro deste
jogo que é o futebol.
— Ser guarda-redes é talvez a
posição mais ingrata em campo.
Nenhum erro é permitido. Nenhum
erro é desculpado.
Entrevista de
IRENE PALMA
— O erro paga-se caro na posi-
ção de guarda-redes. Podemos es-
tar um jogo inteiro sem tocar na
bola e num lance tudo pode ficar
decidido. Quando nos preparamos
para um jogo temos de nos prepa-
rar para defendermos 50 bolas ou
para não defendermos nenhuma.
Quando entramos num jogo não
sabemos o que nos espera, mas te-
mos de estar preparados para tudo.
Isso obriga-nos a estar no jogo con-
centrados, muitas vezes só a ob-
servar, mas preparados para tudo.
É uma posição muito particular.
Quem não passa por lá não tem bem
a noção das fases que atravessamos
durante um jogo.
— Para ser guarda-redes é pre-
ciso ser maluco?
— Essa é uma ideia que se criou à
volta dos guarda-redes. Temos de
ser corajosos e diferentes. Temos de
saber ler o jogo e estar preparados
para uma bola no chão e uma bola
aérea. Para um cruzamento. Outros
jogadores têm de estar preparados
para uma determinada fase do jogo.
Hoje o guarda-redes já deixou de ser
aquele que só defende remates. Hoje
o guarda-redes já constrói. Já tem de
jogar em profundidade. Já tem de
saber ler o jogo. Já é mais um joga-
dor na construção. O maluco na ba-
liza hoje já não serve.
— Quem era o seu ídolo na infân-
cia?
— Era o Preud’homme. Via os
jogos dele e tentava imitá-lo. Até
imitava a maneira como ele batia as
bolas [sorri]. Foi um guarda-redes
que marcou uma geração em Por-
tugal pela qualidade que trouxe.
— Via os jogos dele quando joga-
va no Benfica e tentava fazer igual?
— Via, claro. No dia seguinte ia
Histórias sem fim de um guarda-redes que vingou no mundo do futebol fruto do «espírito de sacrifício» — no final de uma longa carreira, um sorris
para o treino no Mirandela e tenta-
va fazer as coisas que ele fazia. Faz
parte da nossa infância nós admi-
rarmos alguém e gostarmos de ser
como eles. Depois temos de ser nós
a adquirir a forma para lá chegar.
Chegar lá acima no futebol custa
muito. Mantermo-nos lá custa mui-
to mais. No meu tempo havia mui-
to mais sacrifício da nossa parte.
Um miúdo com 16,17 ou 18 anos
para chegar à equipa principal de
um clube como o SC Braga, ou ou-
tro da Liga, tinha de ser muito di-
ferente. Hoje já se vê potencial num
miúdo e dá-se-lhe oportunidade.
Hoje têm mais oportunidades e fa-
cilidades de chegar lá acima. Isso
também os deslumbra um pouco
mais cedo. Mas, no meu tempo,
para se chegar a uma primeira equi-
pa, tinha de se ter algo diferente. Ti-
nha de se trabalhar. Havia mais res-
peito pelos mais velhos. Hoje os
miúdos já são mais atrevidos. As
épocas são diferentes. Como nada
mais havia, restava o futebol, em to-
dos os sentidos. No coração, na
alma, no querer. Hoje falta um pou-
co isso. Se calhar há mais talento,
mas falta um pouco daquele espí-
rito de sacrifício. Eu vejo que hoje
os miúdos desistem mais facilmen-
te. É diferente do meu tempo, mas
eu digo isso e não me considero um
jogador assim tão velho...
j
EDUARDO
— Calma, um ex-jogador. Já não
é jogador...
— Um ex-jogador assim tão ve-
lho [risos]. Noto que às vezes no
treino ainda temos de puxar pelos
miúdos. No meu tempo nós íamos
para os treinos e tínhamos de ser
mais do que os outros, caso contrá-
rio até os mais velhos nos davam ca-
chaços. Hoje já é difícil fazer isso.
— De todos os guarda-redes com
quem lutou por um lugar na bali-
za, qual o fascinou mais?
— Tive a felicidade de partilhar
balneário com muitos. Na minha
fase inicial, com 16 anos, trabalha-
va na equipa principal do SC Braga
com o Quim, que já era uma referên-
cia nas balizas. Aprendi muito com
ele naquela altura. No Chelsea tive a
felicidade de trabalhar com um dos
melhores do mundo, que é o Cour-
tois. Aprendi bastante e vi o que era
realmente trabalhar com alguém de
um nível acima. Com um dos maio-
res do mundo e isso deu-me baga-
gem, até para a minha nova função,
bastante grande.
No Chelsea tive a
felicidade de trabalhar
com um dos melhores do
mundo, que é o Courtois
Tinha de caminhar
quilómetros pelo monte,
ou pela linha do comboio,
para ir para o treino
PEDRO BENAVENTE/ASF PEDRO BENAVENTE/ASF