A Bola - 20200908

(PepeLegal) #1

28 A BOLA


Terça-feira
8 de setembro de 2020
OPINIÃO

O contador da Luz


Por
ANTÓNIO BAGÃO FÉLIX

Tanto caudal noticioso
ou opinativo, certo ou
errado, atrasado ou
adiantado, precisa de ser
alimentado ou pelo
menos ‘soprado’

OMISSÕES. Neste frenesim
selectivo no futebol, nada ouvi
sobre um filho do presidente de um
clube intermediar transferências
para o plantel do clube. Nada ouvi
sobre o calote contumaz de uma
transferência bem cara de um
treinador, enquanto, no mercado, o
clube caloteiro vai comprando
passes de jogadores. Nada ouvi
sobre o total incumprimento do
pagamento de títulos
obrigacionistas, evento altamente
significativo no mercado de capitais.
E mesmo nos jornais, quase nada li, a
não ser em envergonhados rodapés
rapidamente mandados para as
calendas. Imagino o vendaval se isto
se passasse no meu clube, para o
qual não bastavam cair o Carmo e a
Trindade...
PIRATARIA. Iniciou-se o
julgamento relacionado com o
pirata informático Rui Pinto.
Estão garantidas horas e horas
televisivas durante os próximos
meses para acompanhar os Big
Brother 1 e 2. Na maioria da opinião
publicada, e mesmo antes da
decisão do tribunal, o jovem acusado
é um santo, um benemérito, um
herói, um altruísta, um iluminado,
para cujo tão ternurento e
desinteressado fim das suas acções
todos os meios valem. Cito aqui
palavras de um artigo notável de
Isabel Stilwell no Jornal de Negócios
de 18.08.20: «Registo a nova
distinção entre crimes bons e crimes
maus — sugiro mesmo que o ‘Bom
Crime’ passe rapidamente a ser
incluído na Constituição da República
[...]. Por exemplo: se o homem bate na
mulher adúltera, não faz mal, porque o
crime pior era o dela. Decididamente,
queixamo-nos do populismo às
segundas, quartas e sexta, e nos
outros dias praticamo-lo.»

j


j


MIGUEL NUNES/ASF

«Sobre Darwin: só o tempo o dirá, mas confio na certificação sabedora de Rui Costa»

CONTRALUZ

Nota — António Bagão Félix opta por escrever
as suas crónicas na ortografia antiga

Tempo de riscos,


rios, agentes e intermediários e
toda a corte subjacente, se de ami-
gos ou inimigos, se de estruturas la-
terais ou verticais. O certo é que
tudo se sabe ou faz crer que se sabe
e isso não prestigia um grande clu-
be como é o SLB, e até pode o pre-
judicar negocial e reputacional-
mente.

2


Outro vendaval — aliás,
generalizado — é o do re-
demoinho do custo dos
passes, das transacções
cruzadas, de se falar sem-
pre do salário que jogadores ga-
nhavam ou vão ganhar, com esse
preciosismo tecnocrático de salá-
rio bruto e salário líquido, dife-
renciação quase obscena para pes-
soas que vivem com baixos
salários, onde só se fala da remu-
neração bruta. Uma festa que, pelo
mundo inteiro e obviamente tam-
bém no nosso cantinho, se tornou
banal, falando-se de milhões para
cá ou para lá como se fosse uma
coisa banal, até esquecendo-se que
‘no fim do dia’ quem paga somos
nós, ainda que por vias mais direc-
tas ou travessas.
A coerência de análise está qua-
se sempre inquinada pelos fervo-
res clubísticos, quando se fala do
‘preço’ de jogadores. Tem-se dito
e redito que Darwin Núñez custou
uma loucura (todavia, a pagar em
5 anos), tendo ele vindo da segun-
da divisão espanhola e só marca-
do uma vintena de golos (o rapaz
tem 21 anos...). Curiosamente, o
cobiçado goleador Carlos Vinícius
também veio do Nápoles que o con-
tratou ao Real Massamá. Mas, vol-
tando a Darwin, vejo gente a dis-
sertar incrédula sobre o custo e
incomodada não vá o jogador sair
um craque com retorno desporti-
vo e financeiro elevado. Tudo bem,
são, de facto, montantes inusuais
e, na minha opinião, arriscados
onde nem sempre o que parece aca-
ba por ser. Mas tanta estupefacção
neste caso, já não existirá para ou-
tros não muito diferentes? Por
exemplo, para Fábio Silva de 18
anos, que só jogou na última épo-
ca uns ‘pinguinhos’ de tempo
quando o resultado estava seguro
e marcou ao que julgo 3 golos, os 40
milhões que o Wolves (clube que
não luta por títulos em Inglaterra e
está fora das competições euro-
peias) vai dar por ele já são justifi-
cadíssimos e isentos de risco? Bem

sei que o mercado inglês não é o
nosso, bem sei que há magnatas a
financiar e branquear operações,
mas Fábio Silva custar mais 60% do
que Darwin já é aceitável? Um pa-
rêntesis para dizer que o FCP fez um
magnífico negócio, não só quanto
ao valor monetário, como quanto
ao sigilo da operação que, como é
notório, o SLB é infelizmente inca-
paz de assegurar. Mas há mais:
Trincão, que acho que vai ser um
enorme atleta, não foi comprado
pelo Barça por 31 milhões em Janei-
ro, quando só tinha 20 jogos in-
completos na primeira divisão? E
o japonês Nakajima, numas sema-
nas ‘sem perdão’, noutras semanas
‘perdoado’, não custou 12,5 mi-
lhões por metade do passe? ...
Volto a dizer que não nego que
a operação Darwin é de risco rela-
tivamente elevado para o cenário do
futebol português e em plena cri-
se pandémica e económica. Só o
futuro o dirá, mas confio na certi-
ficação sabedora de Rui Costa.

3


O defeso — este bem lon-
go — é matéria-prima
para todos os sonhos e de-
vaneios. Títulos, entrevis-
tas, chegadas, conferên-
cias, frases, vídeos falaciosamente
selectivos para superlativizar qual-
quer golo passado ou um provi-
dencial corte na defesa. Todos cra-
ques, todos estrelas feitas ou a
despontar. Agora é que é: o homem
vai explodir na nova equipa. O dia-
mante por lapidar tem finalmente
oportunidade de mostrar o que (ain-
da não) vale. Abram alas, o antes
tosco vai despontar. Veio para ser
campeão. Voltou ao radar dos gran-

des. De corpo e alma (e suponho
carteira) no novo clube. Talento para
dar e vender. Tem uma forte menta-
lidade. Com a família perto vai ser
uma maravilha. Sou (do clube) des-
de pequenino, e agora essa delícia de
o novo portista Zaidu ter declarado
solenemente que já era dragão na Ni-
gé r i a. Genial, fabuloso, imprevisí-
vel, inteligente, líder, prodigioso,
são alguns dos muitos adjectivos
para se colarem ao recrutamento.
Mais tarde — retirando uma mino-
ria bem confirmada — é o tempo
da decepção, do desapontamento,
do não me habituei ao país, do não
fui ajudado, do percebi que o trei-
nador não contava comigo e outras
considerações que anulam a fan-
tasia. Cada vez estou mais ‘São To-
mé’ no futebol: ver para confir-
mar ou infirmar. A não ser que seja
um Messi ou um Ronaldo.

4


A compra e venda de pas-
ses de jogadores tem qua-
se sempre implicado cus-
tos de intermediação,
vulgo comissões e outros
custos de aquisição, vulgo assina-
turas e luvas. Dá-se até o caso de
o comissionista ser directa ou in-
directamente o atleta ou a família.
Percebo que o jogador tenha uma
assessoria de carreira, nas suas di-
versas e por vezes complexas fa-
cetas. E compreendo que tal ser-
viço deva ser bem remunerado. O
que já não percebo é que nas tran-
sacções efectuadas haja comissão
pela compra e comissão pela ven-
da. É de uma irracionalidade mer-
cantil só comparável aos juros ne-
gativos. Tanto quanto li, na
transferência de Darwin lá surgiu

no último momento a gula comis-
sionista em termos nebulosos, até
com pessoas que julgava definiti-
vamente arredadas do universo
benfiquista. Tem lógica pagar a in-
termediação do serviço a uma en-
tidade que ajuda o clube vende-
dor a colocar um atleta. Mas é de
todo descabida a comissão pela
compra de um jogador. Ou seja,
no fim de uma operação pode ha-
ver dois fees (uso a palavra ingle-
sa para tornar mais modernaço o
estipêndio): do lado do clube ven-
dedor um custo da venda, do ou-
tro lado, um custo da compra, só
não se sabendo que relação dis-
farçada pode haver entre todos e se
há quem, no fim, pague total ou
parcialmente os dois encargos...

1


Há dias, deu-me para pas-
sar umas horas do serão a
fazer zapping sobre todos os
programas televisivos que
falavam de futebol. Uma sé-
rie de canais, desde os dedicados
ao desporto até aos noticiosos ge-
neralistas agora quase especiali-
zados em futebol. O que pude ver
foi um fartote de comentários,
previsões, transferências, enre-
dos, hipóteses em cascata de no-
vas aquisições, dispensas, fake
news, zangas e tudo o mais, obvia-
mente em registos bem diferen-
tes, desde programas maduros e
sensatos a folhetins televisivos
ensaiados, repetidos, fantasiados
e frenéticos. Quase todo o tempo
só dava ‘notícias’ à volta do Ben-
fica! É claro que até percebo (e, em
tese, «isso me envaidece») doses
tão alargadas de Benfica, pois que
as audiências estão mais garanti-
das a fazer fé nos 6 milhões de
adeptos e simpatizantes, mais do
que a soma de todos os outros clu-
bes. Acontece que também tem o
lado contrário, pois que o clube é
discutido pelo que faz, pelo que se
quer que faça (ou não faça) e pelo
que não faz, mas que alguns opi-
nadores querem que se imagine
que se faça para ver o que se se-
ria se não se fizesse. Uma mixór-
dia sem fim.
Tanto caudal noticioso ou opi-
nativo, certo ou errado, atrasado
ou adiantado, seguro ou especula-
tivo, precisa de ser alimentado ou
pelo menos ‘soprado’. E isto preo-
cupa-me. As transferências de jo-
gadores para o Benfica, acertadas
ou abortadas, são quase relatadas
em tempo real. Se o segredo (e no
futebol reforçadamente) é a alma do
negócio, no Benfica tudo se sabe,
tudo se fantasia, tudo se relaciona,
tudo se especula. Lá está — outra
vez —, quem garante audiências é
o Benfica e o resto são cantigas.
Não faço ideia das ‘fontes privile-
giadas’, se dentro ou fora do clube,
se no seio dos virtuosos empresá-


desafios e fantasias

Free download pdf