Revista de Vinhos - Edição 370 (2020-10)

(Antfer) #1
PRODUTO

texto Fátima Iken / fotos Ricardo Garrido

C


hegamos ao paraíso. É essa a
sensação de quem deambula
pelos sapais da ria de Aveiro.
Para além do marulhar das águas,
apenas o sussurro do vento cálido
nos embala e esta bolha de silêncio é apenas
quebrada pelo pipilar das andorinhas-do-mar.
O local ideal para as ostras serem semeadas
e completarem o ciclo de frescura que aqui
se sente e vive, não só pela temperatura, mas
também pela abundância de  plâncton,  alga
fundamental na alimentação da espécie filtra-
dora.
Antiga salina, este recanto edénico dá pelo
nome de “Ostraveiro”, para onde agora nos diri-
gimos de barco, numa curta viagem que nos
introduz logo na aura deste lugar, rodeado de
pilritos, águias pesqueiras ou perna-longas e
povoado de gramata ou salicórnia, já que este é
uma espécie de santuário de halófitas.
E é num cenário de autêntica beleza natural
que apreciamos agora o espelho de água da
Marinha Passagem, onde estamos deitados
numa cama de rede, baloiçando ao sabor
da brisa que lança sopros de salinidade que
entram pelas narinas. A paz que aqui se vive,
entre pinheiros mansos, garante que não per-
demos a viagem. Situada nas cercanias da
antiga lota, não é só pela paisagem e o odor
a moliço salgado que este lugar se reveste de
magia. Os vestígios de um porto quinhentista,
usado pelas caravelas portuguesas que daqui
levavam peças de cerâmica para o mundo
(existem algumas descobertas arqueológicas
curiosas desse mesmo espólio na ria), adensam
a aura do sapal.
O sítio ideal para a ideia de Sandra e Sandro



  • que deitaram mãos à obra para se dedicarem
    à produção de ostras “giga” (Crassostrea gigas)

  • ter asas e voar, já que a atividade da salinicul-
    tura tem vindo a decrescer na ria, sendo subs-
    tituída pelos criadores de bivalves e moluscos.
    Atualmente, são já 22 os produtores de ostra
    na ria. Na Marinha de Passagem, as ostras
    crescem em cerca de oito hectares, cercados
    pelos canais da ria de Aveiro, onde também
    produzem salicórnia. Tudo isto se pode saber
    com as visitas guiadas que o casal efetua antes
    da degustação das ostras que crescem num
    ecossistema rico em fitoplâncton.
    As três espécies mais conhecidas de ostras
    são a crassostrea angulata, a ostrea edulis e a
    ostra japonesa ou giga. A edulis é a mais valiosa
    mas complexa na hora da produção já que é


muito sensível. Torna-se, assim, mais rara. A por-
tuguesa ou angulata está a ser recuperada no
Sado, como já demos aqui conta, aliás.
A giga é maior, garante boas produções a
par de bom crescimento e, por isso, tem vin-
gado apesar de não ser a melhor em termos
de delicadeza organolética. Se no início se
destinava à exportação, hoje vive bem do mer-
cado nacional, pois o consumo tem vindo a
aumentar em Portugal. Originária do Pacífico,
a Cassostrea gigas tem demonstrado mais
resistência e rendimento com produção mais
massificada. Há quem defenda que a “angu-
lata” e a japonesa serão da mesma família, já
que as ostras foram trazidas de forma aleatória,
nos séculos XV e XVI, pelas caravelas portu-
guesas da Ásia. Os juvenis orientais agarra-
vam-se aos barcos e assim aqui chegaram. Por
obra do acaso, a “angulata” passou também a
nascer em águas francesas desde que o navio
Morlaisien, obrigado a ancorar em Arcachon
quando uma tempestade lhe interrompeu a
viagem com destino a Londres, deitou borda
fora uma mercadoria de ostras que começavam
a estragar-se. O facto é que muitas delas esta-
riam ainda vivas e desde então começaram a
reproduzir-se também em Arcachon, ficando
nós sem a exclusividade.
Se a ostra portuguesa - Crassostrea angulata
-, teve uma grande importância comercial na
Europa durante todo o século XX até á década
de 70, foi também esta a altura em que pratica-
mente desapareceu devido a elevadas mortali-
dades devido a uma patologia. Após este quase
desaparecimento da Cassostrea angulata
ou ostra portuguesa (hoje de novo em franca
recuperação), seria introduzida na Europa a
Crassostrea gigas, comumente conhecida por
ostra japonesa ou ostra do Pacífico. Natural
do leste da Ásia (sobretudo China e Coreia), é
também endémica do Japão. Esta substituição,
sobretudo em aquacultura e viveiros, levou a
um crescimento exponencial e a uma distri-
buição geográfica global. Nos últimos anos,
foram produzidas mais de mil toneladas anuais,
constituindo cerca de 99% da produção a nível
nacional.
Em Portugal, o Ministério do Ambiente
defende que são invasoras, mas o facto é que
há mais de 50 anos nascem em rias e estuários
de Aveiro ao Algarve, sem que tenham verda-
deiramente comprometido os ecossistemas
locais, até porque atuam como filtradoras.
Percorremos agora os caminhos do sapal

deambulando num dia sem vento – coisa rara
-- pela Marinha da Passagem, observando os
berçários e a maternidade destas gigas inspi-
radas no sapal da ria aveirense. Nos restantes
redutos elas crescem em sacos e potes, agora
submersos. Os caminhos são inspiradores,
feitos de tapetes de cascaria, já que por aqui
“se aproveita tudo”. Estamos na maré alta e por
isso só daqui a seis horas se viram os sacos.

Semente, maternidade e berçário

Da família das “Ostreidae”, este molusco de
corpo mole e viscoso, suscita paixões e ódios,
como qualquer força da Natureza. Fechada por
fortes músculos adutores, são as brânquias que
filtram o plâncton da água. Pela intensidade de
sabor, pela textura e aroma, é quase fonte de
pecado, de tão bom que é. Como para o vinho, a
proveniência de cada região ou local oferece um
sabor e gosto específicos às ostras, estas mais
ou menos iodadas, mais ou menos salgadas, mais
ou menos doces ou, até, com notas de avelã.
Quando a ostra bebé atinge os 20 milíme-
tros, é colocada em sacos com uma malha
mais larga. A malha vai alargando conforme o
crescimento e em todas as marés aproveita-se
a descida para virar o maior número de sacos
possível que são pesados. Aqui, as ostras são

Fechada por fortes Fechada por fortes


músculos adutores, são músculos adutores, são


as brânquias que filtram as brânquias que filtram


o plâncton da água. Pela o plâncton da água. Pela


intensidade de sabor, intensidade de sabor,


pela textura e aroma, é pela textura e aroma, é


quase fonte de pecado, de quase fonte de pecado, de


tão bom que é. Como para tão bom que é. Como para


o vinho, a proveniência o vinho, a proveniência


de cada região ou local de cada região ou local


oferece um sabor e gosto oferece um sabor e gosto


específicos às ostras, estas específicos às ostras, estas


mais ou menos iodadas, mais ou menos iodadas,


mais ou menos salgadas, mais ou menos salgadas,


mais ou menos doces ou, mais ou menos doces ou,


até, com notas de avelã.até, com notas de avelã.


A casca ebúrnea, a evocar nácar, serve de berço a estas autênticas pérolas comestíveis.
Molusco que representa uma enorme força da natureza, há tantas variedades quanto a
perdição que provocam. Em Aveiro, é a oriental “giga” que comanda, plenamente adaptada
ao sistema lagunar da ria e das antigas salinas.

@revistadevinhos setembro 2020 · 370 ⁄ Revista de Vinhos · 113

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