Revista de Vinhos - Edição 370 (2020-10)

(Antfer) #1

A suculência


Um dos apanágios mais venerados pelos amantes de um bom chur-
rasco é a suculência dos alimentos, particularmente das carnes. A sucu-
lência é uma sensação tátil percebida em toda a cavidade oral, conferida
por líquidos do próprio alimento/preparação, ou induzida pela masti-
gação, com a consequente injeção de saliva. Um exemplo desta sucu-
lência induzida pode ser obtido ao mastigar um pedaço de queijo par-
migiano ou manchego: a boca enche-se imediatamente de sucos e pede
um vinho para limpar esse rio salivar. O melhor exemplo da suculência
intrínseca é-nos dado perante um belo e alto corte de carne bovina
grelhado no carvão, logicamente malpassado. Os sommeliers normal-
mente empregam dois elementos nos vinhos para atacar a suculência
e, ao mesmo tempo, melhorar os seus atributos. O primeiro deles é o
álcool, com as suas propriedades hidrofílicas. O etanol é infinitamente
solúvel em água. Isso acontece porque o grupo OH (polar) do C2H5OH
liga o hidrogénio às moléculas de água. Vinhos mais alcoólicos são desi-
dratantes e ajudam-nos a confrontar com a suculência - um Amarone
italiano com 16% de volume casa espetacularmente com lascas de par-
migiano maduro.
A outra arma dos “somms” na contraposição da suculência são os
taninos. Com a sua capacidade de ligação às proteínas na formação
de complexos que se precipitam, os taninos dos vinhos, ao entrarem
em contacto com as glicoproteínas responsáveis pela lubrificação do
nosso palato, as mucinas, anulam o efeito deslizante ou gelificante.
Imediatamente experimentamos a sensação tátil da adstringência. Essa
secura ou rugosidade provocada pelos taninos ajuda-nos a enxaguar a
suculência; como os sucos das carnes possuem proteínas estas, por sua
vez, agem no sentido contrário, ao amainar os efeitos adstringentes dos
polifenóis do vinho.
Aqui temos novamente que jogar com a sensibilidade e sabedoria,
pois no caso do churrasco e dependendo do nível de amargor dos ingre-
dientes e, principalmente, da crosta obtida, será preferível confron-
tarmos a suculência, não através dos taninos - e assim evitar o realce
sinérgico da sensação tátil de adstringência com o sabor fundamental
amargo -, mas através do álcool. Não é a toa que um Malbec argentino
de gama média parece tão insubstituível com “asados”. Vinhos alcoó-
licos, bem trabalhados em carvalho, com taninos muito macios, doces
e sedosos. A mesma explicação cabe ao Zinfandel californiano com o
barbecue norte-americano, ainda mais com
a fruta tão madura e exuberante a casar com
marinadas agridoces.


Tantos sabores, vinhos polivalentes


Chegou o momento de sair, acender o gre-
lhador e esperar pelos amigos num belo dia
de verão. Muito embora para cada carne, de
acordo com a raça, alimentação ou maturação
do animal, bem como todas as variáveis envol-
vidas na sua execução, haja um vinho especí-
fico para obter a harmonia perfeita, na prá-
tica é muito pouco provável que alguém leve
um churrasco tão exasperadamente a sério.
Podemos, todavia, separar a sucessão de ali-
mentos por ordem de estrutura e sabor e pautar
as nossas escolhas por critérios relevantes para


minimizar o risco de casamentos desastrosos e, finalmente, escolher
vinhos mais flexíveis e polivalentes, os “all-rounder wines”.
Uma simples reorganização da ordem de serviço, por exemplo,
resulta imensamente na eficácia da escolha dos vinhos. Se começamos
com uns lagartos de porco preto que, pela sua estrutura de sabor e teor
de gordura entremeada na carne ficam magníficos com um Bairrada
tinto que ostente a gloriosa acidez - mas cuidado para não escolher
um tânico demais -, não vamos deixar o carapau grelhado para depois.
Seria um contrasenso voltar para um Arinto de Lisboa salgado após o
Bairrada tinto. Dentro da mesma lógica de respeito a um crescendo em
estrutura, um frango marinado com iogurte e garam masala à moda
indiana, excelente com um perfumado Fernão Pires do Tejo, deveria ser
apreciado antes de um “prime rib” de Angus maturado com um belo
exemplar tinto do Douro - e este antes de uma assertiva costela bovina
assada por várias horas, a soltar do osso com uma colher, ao lado de um
profundo alentejano assente em Alicante Bouschet.
Ao definirmos estes grupos de estrutura e alguns vinhos polivalentes
para cada, o sucesso do churrasco e da harmonização está garantido.
Se começarmos com espetos de vegetais de estilo mediterrânico, queijo
tipo halloumi, ostras e vieiras na meia concha, por exemplo, podemos
abrir com um belo champagne ou espumante da Bairrada. Seguimos
com sardinhas ou carapau com um branco mais assertivo e mineral,
como um Verdelho dos Açores, um Arinto de Lisboa ou um grande
Alvarinho de Monção e Melgaço. Em transição para os tintos, não
seria nenhuma ofensa grelhar umas postas de salmão perfumadas com
aneto fresco e camarões na casca com um toque de limão, apoiados por
um subtil rosé da Provença ou similar. As linguiças brasileiras ou sal-
sichas, o piano de porco pré-assado a baixa temperatura e finalizado no
carvão, os seus secretos e lagartinhos e o frango com um toque picante,
ficam perfeitos com tintos de média estrutura, um toque de carvalho,
boa presença de fruta e álcool, além daquela acidez que emulsiona a
gordura sólida. Este perfil de vinho pode ser facilmente encontrado em
Pinot Noirs do Novo Mundo, na Bairrada, no Dão, nos vinhos do Douro
de média gama e nos alentejanos de sub-regiões como Portalegre e
Vidigueira. Dadas as temperaturas mais altas de verão e a proximidade
do fogo, este sommelier recomenda atenção ao serviço dos vinhos mais
arrefecidos, por volta dos 15-16ºC.
Por fim, agrupamos os bovinos, maturados ou não, as costeletas de
borrego, caças e outros sabores mais assertivos e abrimos os grandes
tintos de estrutura para o apoteótico “grand
finale”. Vinhos que aliem a presença dos aportes
olfativos do carvalho com taninos - nunca ads-
tringentes demais -, a evitar o choque com a
tendência para o amargor da divinal crosta
que só o carvão sabe engendrar. Vinhos poliva-
lentes, que nunca dececionam, são os grandes
alentejanos, tintos da Península de Setúbal, do
Tejo, do Douro, da Rioja e Ribera del Duero,
Rhône sul e Languedoc, vinhos da Toscânia, os
Malbecs da Argentina, Zinfandel norte-ameri-
cano, entre tantos outros.
O carvão nunca esteve tão na moda, inclusive
na alta gastronomia. Nesses tempos difíceis, é
um caminho de volta às formas elementares,
aos sabores prístinos, aos valores essenciais da
vida, ao lado da família, amigos e de alguns bons
copos de vinho.

HARMONIZAÇÕES

Vinhos polivalentes,


que nunca dececionam, são


os grandes alentejanos, tintos


da Península de Setúbal,


do Tejo, do Douro, da Rioja


e Ribera del Duero, Rhône


sul e Languedoc, vinhos da


Toscânia, os Malbecs da


Argentina, Zinfandel norte-


-americano, entre tantos


outros.


118 · Revista de Vinhos ⁄ 370 · setembro 2020 @revistadevinhos

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