Revista de Vinhos - Edição 370 (2020-10)

(Antfer) #1
Há lugares que conseguem reunir uma série de atributos que nos
fazem ir e voltar vezes sem conta, mesmo que, em muitos casos, a loca-
lização ou o espaço estejam longe de ser perfeitos. O Senhor Uva fica
numa rua íngreme da Lapa, entre São Bento e o Jardim da Estrela, em
Lisboa, e para quem sobe a pé, como é o meu caso, certamente já terá
desejado que a Junta de Freguesia montasse, ali, um “saca-rabos”,
como os das estâncias de ski. O espaço, uma semicave com cerca de 50
m2, também não é extraordinário. Porém, é acolhedor com a sua deco-
ração simples e luminosidade. Igualmente, quem aterre no local sem
qualquer referência fica com uma primeira sensação de estar apenas
num restaurante de bairro, aberto por um casal estrangeiro simpático,
onde se serve uns pratos agradáveis feitos num fogão igual ao que o
comum dos mortais tem em casa.
Porém, o Senhor Uva é muito mais do que isto. Começando pelos
vinhos que, como o nome deixa adivinhar, são a principal razão porque
muitos de nós lá vamos. É que Marc Davidson, coproprietário e escanção
autodidata, construiu neste pequeno lugar uma das melhores cartas de
vinhos alternativos do país. Por alternativo, leia-se, dentro do espectro
de intervenção mínima, bio, biodinâmicos e naturais, estrangeiros (a
maioria) e portugueses. A quantidade de referências que oferece, cerca
de 150, não é displicente, tendo em conta o tipo de vinhos e o facto de
ainda serem poucos os produtores lusos nesta área. Todavia, mais sig-
nificativo do que a quantidade é a curadoria na escolha, dado que Marc
Davidson conhece bem o que se faz a nível internacional e cada vez
domina melhor, também, o que se produz em Portugal, onde procura
ter um contacto regular com outras pessoas do meio, bem como visitar
produtores no terreno. O canadiano tem atualmente na carta 30 a 35
referências nacionais e contabiliza no portefólio do restaurante 40 pro-
dutores lusos que vão rodando à medida que os seus vinhos vão saindo
ou esgotando. Depois, há ainda a questão do serviço que, sem luxos
ou grandes formalidades, não deixa de ser cuidadoso nos copos, nas
temperaturas, na oferta e aconselhamento a copo e nos preços sen-
satos. Muitos não se dariam a todo este trabalho por acharem que uma

boa parte dos clientes nem sequer dá o real valor a tudo isto. Porém,
quando se é profissional e se tem brio e gosto no que se faz, deve dar
um grande orgulho.
Mas falar do Senhor Uva apenas pelos vinhos, pelo ambiente e boa
energia do lugar, seria injusto. Do outro lado da equação estão os pratos
bem bolados de Stéphanie Audet, parceira de Marc no restaurante e na
vida. Tal como o seu companheiro, Stephanie, de 35 anos, tem carreira
feita no Canadá (com uma passagem pelo Havai), onde se destacou
como chefe de cozinha de diversos restaurantes de cozinha vegan e
vegetariana. Em 2018, o casal mudou-se para Lisboa e em Fevereiro do
ano seguinte abriram o Senhor Uva, com o foco numa cozinha “plant-
-based”, onde ovos e produtos lácteos também entram.
Felizmente, longe vão os tempos em que, para um omnívoro, falar de
um prato vegetariano era sinal de depressão e quando lhe calhava um
na rifa procurava mimetizar algo familiar, tipo feijoada de seitan e afins.
Entretanto o mundo mudou, o consumidor evoluiu e, graças à criativi-
dade de cozinheiras como Stephanie, muitos dos clientes de lugares
como este, nem são, necessariamente, vegetarianos. No fundo, vão a
restaurantes como o Senhor Uva em busca de uma comida saborosa
e inventiva que calha, neste caso, ser confecionada com produtos
frescos, locais e de época. E clientes não lhes faltam. No Senhor Uva,
por exemplo, apesar das limitações devido à pandemia (menos pessoas
a comer fora e limitação de lugares), os seus 14 lugares enchem diaria-
mente e várias vezes ao longo do período em que estão abertos, pelo
que se aconselha reservar.

Vénia à harmonia

As propostas de cariz mediterrânico de Stéphanie combinam bem
com os vinhos escolhidos por Marc e com a natureza descomprome-
tida do espaço. Têm alma, fazem bom uso dos ingredientes, alimentam
e ainda que sejam mais “easy going” do que dadas a grandes subti-
lezas, procuram acompanhar sem atropelar os vinhos. Por exemplo, o

A especificidade


do lugar, com uma forte


componente vínica e


um estilo de cozinha


com abundância


de ingredientes e


pratos para partilhar,


proporcionam o convívio.


@revistadevinhos setembro 2020 · 370 ⁄ Revista de Vinhos · 121

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