Revista de Vinhos - Edição 370 (2020-10)

(Antfer) #1
OPINIÃO

relação pessoal e amistosa”,
relata Manuel Guimarães.
Muitas vezes os príncipes rece-
biam amigos famosos às refei-
ções. Um belo dia, Grace Kelly
pediu ao mordomo “para fazer
render umas almôndegas”, pois
havia chegado inesperadamente
um amigo. Era o cantor norte-
-americano Frank Sinatra que,
segundo contou António Clara


  • logo após estabelecer-se em
    Lisboa como dono de restau-
    rante -, também provou e gostou
    do pastel de bacalhau.
    Para o intérprete dos sucessos
    internacionais “My Way”,
    “Strangers In The Night”, “New
    York, New York” e “Moon
    River”, entre outros, só a receita
    era novidade. Ele já conhecia a
    feliz parceria do bacalhau com
    a batata. Filho de uma italiana
    nascida na Ligúria, que emigrou
    para os Estados Unidos quando
    criança, Frank Sinatra recebeu
    grande influência da mãe na
    formação da personalidade
    e do gosto, inclusive à mesa.
    D. Natalina Garaventa, mais
    conhecida por Dolly, mulher
    enérgica e bem disposta, era parteira profissional,
    mas cozinhava muito bem em casa. Às vezes prepa-
    rava receitas da sua terra natal. A Ligúria é pródiga
    em pratos de bacalhau, sendo um deles o baccalà e
    patate. A este juntam-se outros três clássicos: baccalà
    all’agliata, in agrodolce e fritto.


De Lisboa ou Entre o Douro e Minho?

Os portugueses batizaram com dois nomes o
petisco que encantou Grace Kelly. No sul é denomi-
nado pastel ou pastelinho; no norte chamam-no de
bolinho. Com o formato que tem hoje, a primeira
receita apareceu em 1841, no livro “Arte do Cozinheiro
e do Copeiro”, do Visconde de Vilarinho e de S.
Romão. Conforme o investigador e escritor gastronô-
mico Virgílio Nogueiro Gomes, a designação bolinho
veio provavelmente do livro “Tratado de Cozinha e
Copa”, de Carlos Bento da Mata, de 1904, no qual o
chamou bacalhau em bolos esfolados. “O azeite deve
ser abundante, para que os bolos mergulhem nele
sem tocar no fundo”, ensinou Bento da Mata.
A região de Lisboa inscreveu o pastel de baca-
lhau no concurso que elegeu as 7 Maravilhas da
Gastronomia Portuguesa, em 2011, vencido pelas

alheiras de Mirandela, o queijo
Serra da Estrela, o caldo verde,
a sardinha assada, o arroz de
marisco, o leitão da Bairrada e o
pastel de Belém. Ficou entre os
21 finalistas e muita gente achou
a classificação injusta, susten-
tando que, pelo sabor imperdível
e ampla popularidade, merecia
subir ao pódio.
Alguns escritores gastronó-
micos, porém, entre os quais
Maria de Lourdes Modesto,
Alfredo Saramago e Maria
Emilia Cancella de Abreu, sus-
tentam que o pastel de baca-
lhau não teve origem na capital
lusitana, mas no Entre Douro e
Minho. A região de Lisboa justi-
ficou a candidatura dizendo que
é lá que predomina o consumo
do petisco.
O pastel que encantou Grace
Kelly é a quinta-essência da
combinação do bacalhau com a
batata. Esses são os ingredientes
fundamentais, embora o resul-
tado final dependa das quanti-
dades que leve. Diverge-se sobre
a proporção de ambos. Virgílio
Gomes sustenta que o volume
do bacalhau deve ser o dobro da batata. Por razões
de economia, muitas pessoas cometem um pecado.
Invertem a ordem e, portanto, incorporam menos
bacalhau. O risco é terem que mudar o nome para
pastel de batata. A receita tradicional do petisco reco-
menda bacalhau desfiado, batata cozida e esmagada,
ovo, cebola, noz-moscada, salsa, pimenta, sal e azeite
para fritar.
Trata-se de uma especialidade difundidíssima no
Brasil, denominada bolinho de bacalhau. Tem for-
mato cilíndrico ou arredondado. Recebe apenas esse
nome e, se pedirmos pastel de bacalhau num bar ou
restaurante daquele país, seremos servidos com um
envelope de massa à base de farinha de trigo, sem
nenhuma batata, frito por imersão em óleo vegetal,
recheado com o peixe capturado nos mares da
Noruega, Canadá e Alasca. Assemelha-se à empa-
nada argentina que, no entanto, costuma ser assada.
O pastel de bacalhau também se tornou popular em
Angola. Mas são os portugueses que lhe devotam
o apreço mais excelso, pois embora não o tenham
eleito uma das sete maravilhas da sua gastronomia,
converteram-no num dos símbolos da rica e saborosa
cozinha com a qual encantam o mundo.

J. A. Dias Lopes, crítico gastronómico

Quem apresentou o


pastel de bacalhau a


Grace Kelly foi o seu


mordomo em Paris,


o português António


Clara. Saboreou-o pela


primeira vez na condição


de petisco, acompanhado


com arroz de grelos.


O pastel que encantou


Grace Kelly é a quinta-


essência da combinação


do bacalhau com a batata.


Esses são os ingredientes


fundamentais, embora o


resultado final dependa


das quantidades que leve.


O volume do bacalhau


deve ser o dobro da


batata.


16 · Revista de Vinhos ⁄ 370 · setembro 2020 @revistadevinhos

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