Revista de Vinhos - Edição 370 (2020-10)

(Antfer) #1
Em conjunto, por vezes a
nossa avaliação não irá preva-
lecer. Aí, teremos que aceitar o
juízo de grupo. A solo devemos
ser mais exigentes connosco,
temos que nos autodisciplinar
para que o nosso gosto pessoal
não seja o fundamento maior da
avaliação de um vinho. Esse papel é-nos reservado na
qualidade de consumidores, quando selecionamos os
vinhos que mais gozo nos dão beber em casa ou parti-
lhar com os amigos.

Elas, eles... e um telemóvel

A começar por Bordéus, durante anos Robert Parker
foi o guru da opinião mundial sobre vinho. Com ele,
a crítica centrou-se na atribuição de pontos. Outros
nomes, desde logo o de Jancis Robinson, mantêm uma
aura especial, neste caso com um papel suplementar
igualmente notável na formação e educação para
o vinho. O mediatismo crescente das sociedades e o
advento das redes sociais trouxe a jogo centenas de
outras personalidades, que falam, escrevem, comentam
e pontuam vinhos. Umas sabem o que fazem, outras...
Tudo começou pela blogosfera. Ao separarmos o
trigo do joio, é importante reconhecermos que há
excelentes exemplos de bom trabalho nessa área, blo-
gues que já se tornaram autênticas referências e fontes
de conhecimento. As redes sociais notabilizaram,
entretanto, os chamados “influencers” e aí o cenário é
distinto, uma vez que são frequentes as demonstrações
de falhas de conhecimento sobre o que publicam.
É verdade que as revistas especializadas mantêm-se
como referências junto de um público mais detalhista,
é verdade que existe hoje uma vasta oferta de con-
teúdos didáticos, informativos e de entretenimento
sobre vinho, muito bem elaborados. Mas, para um
público menos avisado, o curioso que se encontra
numa fase muito iniciática do percurso, a fotografia
bonita de um rótulo acompanhada pelo emoji da moda
pode valer tanto ou até mais do que uma classificação
de 95 pontos da Wine Spectator, na altura de decidir o
vinho a comprar.
O vinho é hoje mais popular e menos dessacra-
lizado. Ainda bem. Todavia, o rigor com que se
publicam comentários sobre um determinado vinho
deixa a desejar. Inconscientemente, muitos dos que
se assumem influenciadores ou fazedores de opinião
“bitaitam” com perigosa soberba, confundindo con-
ceitos ou escapando aos factos de uma realidade que
vai muito além do ecrã de um telemóvel. Quantos
“influencers” participaram numa vindima, entraram

num laboratório ou respiraram o
silêncio de uma cave de envelhe-
cimento? Sim, sentir o pó, sujar
os sapatos e as mãos é funda-
mental para conseguirmos inter-
pretar um vinho. É precisamente
aí que começa a ficar definida
a estética de um vinho, não no
rótulo douradinho que o filtro do editor de imagens
vai fazer brilhar ainda mais.
O que hoje é dito ou escrito sobre vinho já não dita
preços como nos tempos de Parker nem abre novos
capítulos dos livros de Jancis. A razão é simples: há
muitos mais atores a comentar vinhos e o acesso gene-
ralizado dos consumidores a informação está mais
facilitado. Porém, apesar de não ser uma ciência exata,
comentar vinho com alguma profundidade merece
premissas como estudo, conhecimento, rigor e, claro,
respeito por quem o faz – os viticultores, os enólogos
e os produtores. Por tudo o que significa, o vinho não
merece ser tratado somente como uma fatiota nova
que se fotografa junto ao espelho do corredor de
nossa casa. O vinho vai muito além disso. O verdadeiro
crítico será quem lhe consegue captar as diferentes
dimensões, que lhe conhece a complexidade e o con-
segue descodificar para o transmitir com simplicidade.
Será quem reconhece méritos e identifica deméritos de
um vinho de 5,00€ ou de 50,00€, justificando-o com
factos e com lógica, independentemente de fotografar
ou não o rótulo.
A quem estar atento? Partilho algumas sugestões à
escala global: Alice Feiring, Allen Meadows, Andrew
Caillard, Andrew Jefford, Antonio Galloni, Carolyn
Evans Hammond, David Schildknecht, Eric Asimov,
Ferran Centelles, Fiona Beckett, James Laube, James
Suckling, Jamie Goode, Jeb Dunnuck, Joe Fattorini, Jon
Thorsen, John Platter, José Peñin, Julia Harding, Lisa
Perrotti-Brown, Luis Gutierrez, Madeline Puckette,
Michel Bettane, Neil Martin, Peter Moser, Peter
Richards, Richard Juhlin, Sarah Ahmed, Stephan
Reinhardt, entre outros. Felizmente, alguns são colu-
nistas da Revista de Vinhos. E, felizmente para mim,
tenho o privilégio de partilhar uma redação e um painel
de provas com um conjunto de pessoas que respeito,
admiro e com quem diariamente aprendo algo mais.
Trabalho, rigor, isenção, seriedade, conhecimento,
prática, humildade (muita humildade). Terá que ser
esta a fibra de um crítico de vinhos. O público rever-
-se-á mais no nome A ou no B, mas a substância e o
conteúdo prevalecerão sempre sobre o fogacho de
uma qualquer “story”. Afinal, os bons vinhos também
são muito assim, não são?

OPINIÃO

José João Santos, jornalista e crítico de vinhos

Comentar vinho com


alguma profundidade


parece-me merecer


premissas como estudo,


conhecimento, rigor,


respeito por viticultores,


enólogos e produtores.


24 · Revista de Vinhos ⁄ 370 · setembro 2020 @revistadevinhos

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