Crusoé - Edição 124 (2020-09-11)

(Antfer) #1

a insegurança, é o sentimento de insegurança”. E completou: “Quero dirigir-me à
inteligência dos franceses e não aos seus baixos instintos, porque o sentimento de
insegurança pertence à ordem da fantasmagoria”.


Fui entender a indignação ao ler o que escreveu o jornalista René Naba, em artigo
publicado no jornal Le Parisien: “Um policial que comete um ato selvagem é um erro
grave. Mas um negro ou um árabe que atira num policial ou joga o carro contra ele é
enselvajamento. O vocabulário não é neutro”. Ou seja, como os assassinos de
Monguillot possivelmente não eram brancos, o ministro do interior estaria sendo
racista e xenófobo quando empregou a palavra relativa a selvagem. Ele a teria tomado
de empréstimo da extrema direita, que a emprega constantemente para assombrar os
franceses com a ideia que o país está sendo invadido por imigrantes ilegais e perigosos.
Aliás, integrantes do Front National, partido da direitista Marine Le Pen, chegaram a
difundir na internet a foto de um homem de 29 anos como um dos agressores de
Monguillot, no que se revelou ser uma fake news.


Aqui do meu canto, gostaria de dizer que continuarei a usar o termo “selvagem” e
todos a ele relacionados, neologismos também, independentemente de serem
utilizados da forma que for pela extrema direita ou de serem motivo de admoestações
da patrulha da esquerda. Quando assisti à depredação do Boulevard Saint-Germain,
em Paris, por um monte de brancos, chamei-os de selvagens, sem nem sequer cogitar
longinquamente que a expressão do meu estupor pudesse conotar outra coisa que
gente sem respeito, sem educação, sem civilidade. Assim como o ministro do Interior
francês, acho que o mundo está sendo tomado pela selvageria de todos os lados. A
brutalidade é selvagem, a ignorância é selvagem, a corrupção é selvagem, a destruição
do ambiente é selvagem. O preconceito é selvagem. O autoritarismo é selvagem,
inclusive em relação à língua.


As palavras não são neutras, tem razão o jornalista francês que escreveu no jornal Le
Parisien, mas boa parte delas sofreu tamanha transformação nos seus significados, às
vezes em curto espaço de tempo, que acepções pejorativas primeiras foram canceladas,
sem chance de ressurreição, por mais que haja idiotas tentando fazer isso. A história
pode transformar em ruínas o que parecia ser eterno e fazer terra arrasada do que se
afigurava inexpugnável — tal é a sua beleza, tal é a sua tragédia, a depender do caso. A
língua é também processo histórico. Veja-se o exemplo de “gótico”, palavra que
designa o estilo que floresceu na França e erigiu as mais belas catedrais do mundo. Ela
foi utilizada originalmente pelos italianos, para definir o que julgavam ser a arte dos
godos bárbaros. Quem diria hoje que, por ser gótica, a Notre-Dame de Paris, lambida
por chamas selvagens, no sentido de indomadas, foi construída por alienígenas
incultos e desprezíveis? Por falar em bárbaro, em português do Brasil, o termo ganhou
também o significado de bonito, gentil, amigo, muito legal e por aí vai — o exato
oposto de acepções anteriormente atribuídas a ele.


Selvagens mataram Monguillot. Selvagens estão destruindo o Brasil. Não me amolem.


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