Clipping Banco Central (2020-09-16)

(Antfer) #1

Rio de Janeiro, fevereiro e março


Banco Central do Brasil

O Estado de S. Paulo/Nacional - Espaço Aberto
quarta-feira, 16 de setembro de 2020
Cenário Político-Econômico - Colunistas

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Autor: José Nêumanne


De 1808, quando dom João VI desembarcou na baía,
cuja visão encantou Cole Porter, a 1960, quando JK
inaugurou a "novacap", o Rio de Janeiro foi corte e
capital da continental Pindorama: 212 anos de poder,
charme e glória. Nestes últimos seis decênios, foi
Estado da Guanabara, cidade estadual, desaparecida
após 15 anos, ora capital do modesto Estado vizinho ao
extinto Distrito Federal, a que foi anexado na fusão por
obra e desgraça da fase mais brutal da ditadura militar.


Ironia de Clio, deusa da História, o terrível tribuno e
talentoso orador que seria o melhor governador do País
na menor e menos longeva unidade da Federação,
Carlos Lacerda, foi cúmplice do golpe militar que
destruiu a democracia liberal de 1946. E fez da "Cidade
Maravilhosa" um teatro de horror. Tradutor e intérprete
da tragédia Julius Caesar, de Shakespeare, o
fluminense de Vassouras fundou o Rio moderno com os
Túneis Rebouças e Santa Bárbara e o Parque do
Flamengo. Fez ainda a adutora do Rio Guandu, solução
para o incômodo cantado na marchinha Vagalume Rio
de Janeiro, de Victor Simon e Fernando Martins,


sucesso dos Anjos do Inferno no carnaval de 1954: "Rio
de Janeiro, cidade que me seduz, de dia falta água, de
noite falta luz".

O "Corvo", personagem do caricaturista Lanfranco
Vaselli, o Lan, foi o apelido dado a Lacerda por quem
nunca perdoou seu vezo golpista, que levou Getúlio
Vargas ao suicídio. Morto em 1977, ele não tomou
conhecimento do atentado terrorista a bombas contra a
adutora planejado pelos capitães Jair Bolsonaro e Fábio
Passos, dez anos depois. O ato protestava contra os
baixos soldos e o então ministro do Exército, general
Leônidas Pires Gonçalves, conforme ele disse à Veja:
"Nosso Exército é uma vergonha nacional, e o ministro
está se saindo como um segundo Pinochet". O oficial foi
processado por "deslealdade e indisciplina" e absolvido
por decisão absurda do Superior Tribunal Militar, que
considerou laudos "inconclusivos" de croquis provas a
favor do réu.

O dono da bela voz que deixou gravados os textos
imortais do bardo de Stratfordupon-Avon sobre a
conjura contra César talvez concordasse com o
terrorista fardado, após ver abortado seu projeto de
disputar a Presidência, em 1965, com JK, também
traído pelos militares. Mas a morte o privou de
testemunhar o terrorismo malsucedido do atual
presidente. E ainda o pouparia de ver o "mar de lama"
que atribuía a seu inimigo maior, Getúlio Vargas, tornar-
se uma poça, instalada nos jardins do Palácio
Guanabara, de cujos aposentos cinco de seus
sucessores no governo do Estado fundido foram
levados para celas.

Quem acompanha o destino do Rio pode às vezes se
deixar seduzir pelo lugar-comum de atribuir a
características especiais da urbe construída entre o mar
e a montanha seu inglório destino de hoje. De fato, o
"Rio de Janeiro, fevereiro e março", cantado pelo baiano
Gilberto Gil, é o retrato ampliado de uma situação além
do carnaval de fevereiro e do golpe de março (ou
abril?). Nada há de específico nela que seja
substancialmente diferente do restante do Brasil.
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