Clipping Banco Central (2020-09-17)

(Antfer) #1

Modesto Carvalhosa - Reforma administrativa, realismo fantástico


Banco Central do Brasil

O Estado de S. Paulo/Nacional - Espaço Aberto
quinta-feira, 17 de setembro de 2020
Cenário Político-Econômico - Colunistas

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Autor: Modesto Carvalhosa


A reforma administrativa enviada ao Congresso
Nacional em 4 de setembro nos remete imediatamente
ao realismo fantástico em que secularmente vive a
América Latina. Em nossa região há sempre uma
distorção do tempo, que é dissociado da racionalidade e
da realidade presente. Vivemos o tempo cíclico, em vez
do tempo linear e sequencial. O presente se repete
infinitamente ou se parece com o passado, sempre na
busca de um futuro imaginário.


Brasil, país do futuro (há 500 anos). Brasil potência
(Geisel). Estados Unidos do Brasil (Constituição de
1891). Cinquenta anos em cinco (Juscelino). A classe
pobre virou classe média (Lula). Pátria educadora
(Dilma). A cloroquina, e não a vacina, nos salva da
covid-19 (Bolsonaro).


Os nossos países balançam entre populismos de
esquerda e de direita, que vão do peronismo, do
getulismo, do castrismo, do chavismo, do janismo, do
lulismo ao bolsonarismo. No entanto, somos sempre
governados por oligarquias atrasadas e arquicorruptas -


como o Centrão, faça sol, faça chuva.

Como lembra Moacyr Scliar, fundado na obra do notável
autor de Acerca do RealMaravilhoso Americano, Alejo
Carpentier, "a América é o único continente onde
diferentes eras coexistem, onde os avanços
tecnológicos da modernidade convivem com o primitivo.
Esta situação configura o choque cultural do qual nasce
a fantasia que alimentará (...) o realismo mágico latino-
americano ( ... ). Ele não apenas funde a narrativa
realista com elementos fantásticos; vai mais além,
sobretudo por causa do quadro político, econômico e
social vigente na América Latina ( ... ). E então que o
atraso da região fica mais evidente".

A tragédia histórica, cultural e, sobretudo, social dos
países latino-americanos é fartamente retratada nos
romances e crônicas de Asturias, Carlos Fuentes,
Cortázar e Mario Vargas Llosa. Mas é na obra-prima de
Gabriel García Márquez, Cem Anos de Solidão, que
melhor temos esse retrato, em sua descrição da vida
em Macondo, o território mítico que espelha esse
quadro de nossa doentia visão do mundo e de nossas
ações e condutas que nunca levam a nada, de que
nenhum progresso resulta, em que nenhuma
oportunidade é aberta ao povo, cada vez mais pobre e
miserável.

A retumbante Proposta de Emenda Constitucional
(PEC) 32/2020, da reforma administrativa, é o espelho
desse realismo fantástico. Mudam-se inúmeros artigos
da Constituição de 1988, porém sem tocar nos direitos
adquiridos dos atuais servidores públicos.

Trata-se de uma reforma que pretende resolver o
problema do monumental déficit público causado pela
folha de pagamento dos mais de 11 milhões de
servidores estáveis, mas sem tocar em um centavo
dessa mesma folha de pagamento. Procura-se diminuir
a "participação" dessas fabulosas despesas no produto
interno bruto (PIB), atualmente de 13,8%, para algo em
torno de 9%, mas isso somente daqui a uns 50 anos,
quando alguns dos atuais servidores ativos e inativos e
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