Claude Lévi-Strauss - As estruturas elementares do parentesco (1982, Editora Vozes) - libgen.lc

(Flamarion) #1

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da vida cotidiana, já fornecemos um esboço de demonstração de sua
generalidade.
Mas existe um domínio que nos coloca em presença de uma expe·
riência ainda mais universal que a resultante da comparação dos hábitos
e dos costumes. É o do pensamento infantil, que fornece, em todas as
culturas, um fUndo comum e indiferenciado de estruturas mentais e de
esquemas de sociabilidade, do qual cada uma retira os elementos que
lhe permitirão construir seu modelo particular. As observações da psi·
cologia da infância revelam, em forma concreta e viva, mecanismos que
temos certa dificuldade em atingir pela análise teórica, porque corres·
pondem a exigências e formas de atividade muito fundamentais e, por
essa razão, enterradas nos mais profundos recantos do espírito. A cri·
ança não os deixa perceber porque seu pensamento oferece a imagem
de um suposto "estágio" da evolução intelectual, mas porque sua expe·
riência, menos que a do adulto, sofreu a influência da cultura particu·
lar a que pertence. As observações de Susan Isaacs são, deste ponto de
vista, especialmente preciosas.
Aquela autora começa por acentuar a força e o caráter premente do
desejo, comum a todas as crianças pequenas, de ter a posse exclusiva,
ou pelo menos a maior parte, de todo objeto que constitui um centro
atual de interesse. "É uma profunda satisfação ter tudo para si e uma
tristeza muito amarga verificar que os outros têm mais".' Esta atitude
não existe somente com relação aos objetos materiais, mas também atino
ge direitos imateriais, como por exemplo o de ouvir ou cantar uma can-
ção. Por isso, não há lição mais difícil de aprender para as crianças
de menos de cinco anos do que esperar sua vez: "a criança s6 sabe uma
coisa, os outros "o têm" e ela "não têm". Alguns minutos de espera re-
presentam uma eternidade". ~
Poucas análises etnográficas são tão apaixonantes quanto as da mes·
ma autora, apresentando os mecanismos pSicOlógicos pelos quais a no-
ção de arbitragem ou de intervenção chega a impor·se ao espírito in-
fantil. A propósito de um conflito entre duas crianças que pretendiam
o uso exclusivo de um velocípede, S. Isaacs observa que nenhuma das
duas crianças quis aceitar a arbitragem antes de ter feito a experiência
da impossibilidade prática de chegar a seus fins pela própria vontade.
Neste caso, acrescenta, as duas crianças podiam ensinar uma à outra
uma lição, porque se defrontavam em força e em tenacidade. Eis a in-
terpretação: "Se meu prazer, pensa a criança, deve ser limitado pelo de
outrem, então é preciso ao menos que eu tenha tanto quanto ele. Se
não posso ser superior, devemos ser iguais. Meu desejo de posse ex-
clusiva é diSCiplinado pelo medo que tenho das jntromissões do outro,
e pela esperança de que, se admiti·lo como tendo o mesmo direito, não
procurará pOSSUir mais". Em outras palavras, lia igualdade é o menor
múltiplo comum de todos estes desejos e de todos estes medos con-
traditórios".3
Se esta evolução psicológica é possível, é porque, conforme S. Isaacs
percebeu profundamente, o desejo de pOSSUir não é um instinto e ja-
mais se funda (ou só muito raramente) numa relação objetiva entre o


  1. S. Isaac.!i, SOcial

  2. Ibid., p. 223.

  3. Ibid., p. 223·224.


Development in Young Children, Londres 1933, p. 221.

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