Claude Lévi-Strauss - As estruturas elementares do parentesco (1982, Editora Vozes) - libgen.lc

(Flamarion) #1

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porque é somente em linha materna que são humanos, seus pais des-
cendem de um urso". Os Gold negam contudo esta interpretação, e Latti·
more inclina·se a aplicá-la aos Gilyak." Os costumes a que faz alusão
têm certamente um análogo entre estes últimos. n
Poderíamos ser levados a interpretar a participação do tio materno
nO preço da noiva nos termos estritamente limitados do sistema Gilyak.
O tio materno da noiva é o próximo axmalk da linhagem desta, e por-
tanto axmalk afastado, tuyma axmalk, da linhagem do noivo. As regras
da compra parec~m assim indicar que o casamento envolve não somente
imgi e axmalk próximos, mas também axmalk e imgi afastados, pois esta
é a relação que une a linhagem do noivo com a do tio materno da noiva.
Tudo se passa, portanto, como se nas prestações matrimoniais os parti-
cipantes fossem os axmalk e os imgi, tomando estes dois termos em sua
mais ampla acepção.
Tal interpretação esbarraria, entretanto, na regra dos tuyma axmalk,
segundo a qual estes últimos não podem receber mulher dos imgi.
Achamo-nos, pois, em face de uma espécie de contradição inerente ao
sistema, sendo preciso verificar se esta contradiçãe é aparente ou real,
e, em qualquer caso, qual é a significação dos fatos através dos quais se
exprime.
O duplo papel do tio materno no sistema Gilyak, isto é, protetor de
sua sobrinha contra "o urso" ex6gamo e parte interveniente no contrato
de casamento, possui exato equivalente nos sistemas de troca generali-
zada do sul da Asia, estudados nos capitulos precedentes. Ao se diri-
girem a um chefe, diz Parry, os Lakher empregam o termo papu, que
significa "tio materno", a mais honorífica das expressões existentes em
sua língua,"' e com efeito, o tio materno goza de um respeito igual,
quando não superior, ao que um indivíduo demoristra com relação a seus
pais. O tio materno tem particular interesse não somente por seus sobri-
nhos mas também por suas sobrinhas. É ele que recebe o puma quando
sua sobrinha se casa. Este pagamento excede freqüentemente a parte
recebida pelo pai, que deve dividi-la com os filhos. Fato notável: esta-
belece·se um vinculo mais estreito entre tio e sobrinhas do que entre
tio e sobrinhos. As sobrinhas o tio devê uma parte de todos os animais
que mata na caça, e somente na falta de sobrinha é que se esperará
dele um ocasional presente aos sobrinhos. É proibido (ana) ao tio ma-
terno injuriar ou amaldiçoar seu sobrinho, e se esta eventualidade se
produzisse seria preciso um sacrifício para expiar este crime, o qual, a
não ser assim, atrairia as piores desgraças para a família. Um sobrinho
não pode, sob nenhum pretexto, casar-se com a viúva de seu tio materno,
porque o casamento seria estéril, ou então os filhos nasceriam cretinos,
coxos, cegos ou loucos.~;;
Shakespear define o termo pu entre os Lushai como significando
"avô, tio materno, e qualquer outro parente do lado da mulher ou da


  1. Lattimore, p. 49-50.

  2. Entre os gilyakes, os amantes que pertencem a categorias proibidas não têm
    outro recurso senão suicidarem-se. É interessante que Sternberg cita em apoio uma
    canção a propósito de uma mulher que se torna amante de seu tio_ Sua irmã chama-a
    "cadela" e chama seu amante "demônio". e todos juntos, irmã. pai e mãe, não pa-
    ram de gritar-lhe: "Mata-te, mas mata-te logo!" (Sternberg, p. 107).

  3. N. E. Parry, The Lakhers, p. 239 a 244.

  4. Parry, p_ 243. - Ver também Shakespear, The Lushei Kuki Clans, p. 217-219


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