Que aconteceu? As duas garrafas são idênticas em volume e seu con-
teúdo de qualidade semelhante_ Cada qual dos participantes desta cena
reveladora afinal de contas não recebeu nada mais do que se tivesse con-
sumido sua porção pessoal. Do ponto de vista econômico ninguém ganhou
nem perdeu. Mas é que na troca há algo mais que coisas trocadas.
A situação de duas pessoas estranhas que se defrontam a menos
de um metro de distância dos dois lados de uma mesa de restaurante
barato (a posse de ultla mesa individual é um privilégio pago e não
pode ser concedido abaixo de certa tarifa) é banal e episódica. É en-
tretanto eminentemente reveladora, porque oferece um exemplo, raro em
nossa sociedade (mas que as formas primitivas da vida social multipli-
cam), da formação de um grupo para o qual, sem dúvida por motivo
do caráter temporário, não se dispõe de uma fónnula já pronta de in-
tegraçãO. O uso de nossa sociedade é ignorar as pessoas cujo nome,
ocupações e categoria social não são conhecidos. Mas, no pequeno res-
taurante, tais pessoas acham-se colocadas durante duas ou três meias-
horas em uma promiscuidade muito estreita, e momentaneamente unidas
por uma identidade de preocupações. Um conflito, sem dúvida não muito
agudO, mas real, o que basta para criar um estado de tensão, existe
numa e noutra, entre a nonna da solidão e o fato da comunidade. As
pessoas sentem-se ao mesmo tempo sozinhas e em conjunto, obrigadas
à reserva habitual entre estranhos, enquanto sua posição respectiva no
espaço físico e sua relação com os objetos e utensílios da refeição su-
gere, e em certa medida exige, a intimidade. Estes dois estranhos acham·
se expostos, por um curto espaço de tempo, a viver juntos. Sem dúvida,
não por um tempo tão longo nem tão estreitamente quanto no caso de
dividirem uma cabine de transatlântico ou um leito de trem noturno.
Mas também por esta razão a cultura interessou-se menos em definir
um protocolo. Nada poderia impedir uma imperceptível ansiedade de sur-
gir no espírito dos convivas, com base na ignorância do que o encontro
pOde anunciar de pequenos aborrecimentos. A distância social mantida,
mesmo se não for acompanhada de nenhuma manifestação de desdém,
insolência ou agressão, é por si só um fator de sofrimento, no sentido
em que todo contato social contém um apelo e este apelo é uma espe-
rança de resposta. A troca do vinho permite a solução dessa situação
fugaz mas difícil. É uma afirmação de boa vontade, que dissipa a incer-
teza recíproca, substituindo um vinculo à justaposição. Mas é também
mais que isso. O parceiro, que tinha o direito de se conservar reser-
vado, é provocado a sair desse estado, o vinho oferecido atrai o vinho
retribuído, a cordialidade exige a cordialidade. A relação de indiferença,
desde o momento em que um dos convivas decide escapar a ela, não
pode mais reconstituir-se tal como era. Daí em diante só pOde ser de
cordialidade ou de hostilidade, pOis não se tem a possibilidade, sem in-
solência, de recusar seu copo ao oferecimento do vizinho. E a aceitação
da oferta autoriza uma outra oferta, a da conversa. Assim, vai-se esta-
belecendo uma cascata de pequenos vinculos sociais, por uma série de
Oscilaçôes alternadas, por meio dos quais adquire-se um direito ao ofe-
recer, ficando obrigada ao receber, e, nos dois sentidos, sempre além
daquilo que foi dado ou aceito.
Há mais ainda. Aquele que abre o ciclo adquire a iniciativa, e o
maior desembaraço social de que deu prova passa a ser para ele uma
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