Claude Lévi-Strauss - As estruturas elementares do parentesco (1982, Editora Vozes) - libgen.lc

(Flamarion) #1

vantagem. Porque a abertura traz consigo sempre um risco, o do par-
ceiro responder à libação oferecida por um copázlo menos generoso, ou,
ao contrário, do parceiro praticar uma maior oferta e nos obrigar -
não esqueçamos que a garrafa é minima - ou a perder, em forma da
última gota, nosso último trunfo, ou a fazer ao nosso prestígio o sacri-
flclo de uma garrafa suplementar. Estamos, portanto, é verdade que em
escala microscópica, em presença de um "fato social total", cujas impli-
cações são ao mesmo tempo psicológicas, sociais e econômicas. Ora, este
drama aparentemente fútil, a que o leitor talvez ache que concedemos
uma Importãncia desproporcionada, parece-nos ao contrário oferecer ao
pensamento sociológico matéria para inesgotáveis reflexões. Já indicamos
o interesse que apresenta para nós as formas não cristalizadas da vida
social ", com os agregados espontãneos resultantes de crises, ou (como
o exemplo que acaba de ser discutido) simples SUbprodutos da vida co-
letiva. Temos talvez em mãos vestígios ainda frescos de experiências psi-
cossociais muito primitivas, cujo equivalente procurariamos em vão na es-
cala, irremediavelmente inferior, da vida animal, ou na escala, muito
superior, das instituições arcaicas ou selvagens. Neste sentido, a atitude
respectiva dos estranhos no restaurante aparece-nos como a projeção in-
finitamente longinqua, dificilmente perceptivel, mas contudo reconhecível,
de uma situação fundamental, a saber, aquela na qual se encontram in-
dividuos ou bandos primitivos, que entram em contato pela primeira vez,
ou excepcionalmente, com desconhecidos. Mostramos em outro lugar" os
caracteres dessa experiência, entre todas angustiante, da vida primitiva.
Os primitivos só conhecem dois meios de classificar os grupos estranhos:
ou são nbons" ou são "maus". Mas a tradução ingênua dos termos in-
dígenas não nos deve iludir. Um grupo "bom" é aquele ao qual, sem
discutir, concede-se hospitalidade, aquele para o qual nos despojamos dos
bens mais preciosos, ao passo que o grupo "mau" é aquele do qual se
espera e ao qual se promete, na primeira ocasião, o sofrimento ou a
morte. Com um luta-se, com o outro troca-se. É por este prisma que se
deve compreender a lenda Chukchee dos "Invisíveis", na qual os bens,
misteriosamente veiculados, trocam-se por si mesmos. Nada a esclarece
melhor que a descrição de seus antigos mercados, aos quais se vinha
armado, sendo os produtos oferecidos na ponta das lanças. As vezes
segurava-se um pacote de peles com uma das mãos e com a outra uma
faca de pão, de tal modo o individuo estava pronto a entrar em luta
à menor provocação. Por isso, o mercado era outrora designado com
uma única palavra, elpu'r.1kln, "trocar", que se aplicava também às ven-
detas. A lingua moderna introduzia um novo verbo: uili'uikln, "fazer co-
mércio", correspondente ao koryak uili'uikln, "fazer a paz", O autor a
quem devemos estas observações acrescenta: "A düerença de sentidos
entre o antigo e o novo termo é significativa"."


Ora, a troca, fenômeno total, é primeiramente uma troca total, com-
preendendo o alimento, os Objetos fabricados e esta categoria de bens
mais preciosos, as mulheres. Sem dúvida, estamos muito longe dos es·



  1. P. 49ss.

  2. C. Lévi-Strauss, La Vie familiale et soct.ale des lndiens Nambikwara.

  3. W. Bogoras, The Chukchee"'J p. 53-55.


100

Free download pdf