National Geographic - Portugal - Edição 235 (2020-10)

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a infância no continente permite-nos apreciar os
desafios e proezas de um continente complexo,
diversificado e em constante evolução.

INFÂNCIAS ROUBADAS. Na selva do Leste da Repú-
blica Democrática do Congo, Gloire Mishiki e Rodri-
gue Masudi, de 12 anos, materializam uma das
cicatrizes mais profundas do continente. São pro-
tagonistas de um dos 16 conflitos armados de
África. Em todo o planeta, há 34 em curso.
Gloire e Rodrigue são crianças-soldado
que, há três anos, trocaram a infância por
uma Kalashnikov. É meio-dia, o sol
encharca as têmporas e um grito quebra a
calma: “A eles, agora!” Atiram-se ao ar
como uma árvore que irrompe sobre a erva
alta, fixam o olhar num riacho ao fundo de
uma planície e seguram a arma com as
mãos. À sua volta, ouvem-se gritos de adul-
tos: “Avancem! Sem medo! Disparem!” Os
dois rapazes progridem, agachados, mas
com a expressão tranquila de quem sabe que hoje
não vão morrer nem matar: é um treino militar. Um
exercício militar do Movimento de Acção para a
Mudança (MAC), um dos mais de setenta grupos
rebeldes activos no país. A seu lado, milicianos ves-
tidos com camisolas rotas e chinelos, homens
esquálidos que de noite se embriagam e aterrori-
zam os civis, disparam contra um inimigo imaginá-
rio, num gesto que condensa a tolice de uma guerra
suspensa desde a assinatura de um acordo de paz
oco há 18 anos: levantam as armas, apontam e imi-
tam o som das balas com a boca. Não há dinheiro
para desperdiçá-las. Bum, bum, bum. Rá-tá-tá-tá.
Rodrigue e Gloire são crianças-soldado e devem
dar a vida pelo líder. Não têm alternativa. Fazem
parte da guarda pessoal do general Mbura, líder
do MAC, desde que homens armados das FDLR
(Forças Democráticas para a Libertação do Ruan-
da), em cujas fileiras militam autores do genocídio
do Ruanda que fugiram para o Congo, assaltaram
a sua aldeia e lhes mataram os pais. Mbura, de 34
anos, insiste que o seu grupo é defensivo e que as
suas crianças-soldado alistaram-se devido à sua
generosidade. O recrutamento de menores de 15
anos é considerado um crime de guerra. “Torna-
ram-se voluntários porque eu trato deles.”
Segundo um relatório da ONU, existem no
mundo mais de 12 mil crianças-soldado, meta-
de das quais em África, embora a organização
admita que o seu estudorefere apenasos ca-
sos verificados e que o númerorealdeveráser
muito superior.

A desigualdade começa nesse minuto zero: em
África, um bebé tem dez vezes mais possibilidade
de morrer nas primeiras 24 horas de vida do que
num país ocidental. Isto poderia evitar-se. Dois
terços dessas mortes ocorrem devido a infecções
ou cuidados deficientes de saúde. A Etiópia, com
109 milhões de habitantes, é o segundo país mais
povoado de África, e resiste a esse destino escrito.
Apesar de ainda ser um país inseguro para a na-


talidade, reduziu as mortes neonatais para meta-
de em 15 anos. A sua estratégia consistiu em criar
uma rede de cuidados de saúde com diferentes
níveis de assistência, um plano de sensibilização
contra os partos em casa e a formação de 38 mil
novos profissionais de saúde.
Se a vida de Jamila ainda está por um fio perto
da meia-noite, isso deve-se ao reforço lento, mas
constante, do sistema de saúde etíope. Se tivesse
nascido em casa, como os seus dois irmãos, já es-
taria morta. Às 23h50, os médicos iniciam, resig-
nados, os preparativos para retirar a bebé da sua
carapaça protectora e Hawi leva as mãos à cara.
Suspira. Então, acontece um milagre. Ouve-se um
estalido e a electricidade regressa. Jamila perma-
nece na incubadora, lutando.
A luta pela sobrevivência de Jamila é a de todo
um continente. A região do planeta onde nascem
mais bebés é também a que tem a população mais
jovem, com idade média de 18 anos, em compara-
ção com os 42 anos da Europa. África é o futuro: os
avanços na educação, na saúde e nos direitos da
mulher e a irrupção da tecnologia já começaram
a transformar a realidade africana. O resultado
é uma explosão de vida. A partir de 1960, com a
vaga de independências que sacudiu o continen-
te, a esperança de vida passou de 40 para 61 anos
e a população, de 283 milhões para 1.340 milhões.
No entanto, também há sombras em África.
Ainda hoje, milhões de pessoas sofrem com os
danos causados pela guerra, o jihadismo, a po-
breza e as alterações climáticas. Um olhar sobre


A LUTA PELA SOBREVIVÊNCIA DE JAMILA
É A DE TODO UM CONTINENTE. A REGIÃO
DO PLANETA ONDE NASCEM MAIS BEBÉS
É TAMBÉM A MAIS JOVEM.
áfrica é o futuro:
OS AVANÇOS NA EDUCAÇÃO, SAÚDE
E DIREITOS DA MULHER JÁ COMEÇARAM
A TRANSFORMAR A REALIDADE AFRICANA.

(Continua na pg. 62)

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