National Geographic - Portugal - Edição 235 (2020-10)

(Antfer) #1
ÁFRICA 63

três soldados de 11 anos a seu cargo que o seguis-
sem e entregou-se com eles numa base de capa-
cetes azuis da ONU. As dez balas eram a prova de
que não mentia e os três rapazes uma tentativa
íntima de absolvição. “Nessa época, detinha o
cargo de capitão com várias crianças-soldado a
meu cargo. Peguei naqueles três porque tinham
11 anos, como eu, quando comecei. Tinha medo
que me denunciassem, mas quis salvá-los. Não
sei porquê.” A atenção mediática em África cos-
tuma incidir sobre o guerrilheiro, o assassino
ou o carrasco. No entanto, quando a guerra e o
ódio corroem os alicerces de um país, há milhões
de africanos que se arriscam a ajudar os outros.
A agir como seres humanos. Djibrine Mbodou, de
17 anos, é um deles. Esteve sequestrado durante
um ano e meio no lago Chade, uma região fron-
teiriça entre a Nigéria, os Camarões, o Níger e o
território chadiano, onde se refugia o grupo jiha-
dista Boko Haram, cujo nome, em língua haúça,
se traduz por “a educação ocidental é pecado”.
Nos últimos 11 anos, o grupo fundamentalista,
do Norte do país que pretende impor uma inter-
pretação radical da sharia provocou uma carni-
fi cina de 37.500 mortos, 2,5 milhões de desloca-
dos e milhares de sequestros. Djibrine treme ao
recordar a noite em que os viu pela primeira vez.
Quando os barbudos entraram na ilha de Galoa,
gravaram a sua mensagem com sangue: reuniram
todos no centro da aldeia, cortaram o pescoço ao
chefe e sequestraram os setecentos habitantes.
As semanas posteriores foram uma mistura de
fome e execuções sumárias, motivadas por pre-
textos futéis. Depois, fi zeram uma oferta irrecusá-
vel aos jovens como Djibrine. Se pegassem numa
arma e se alistassem, o seu sofrimento acabaria
porque participariam nas pilhagens e até pode-
riam escolher uma esposa entre as reféns. Como
a alternativa era uma morte provável, muitos jun-
taram-se ao grupo. Djibrine não. “Sou apenas um
pescador e não um assassino. Pescava para eles,
mas sabia que a minha única saída era fugir.”
Suportou o terror das chicotadas sempre que re-
gressava sem peixe sufi ciente na rede, até que um
dia se afastou com a canoa e, quando pisou terra
fi rme, desatou a correr. Se o apanhassem, sabia
porque já o vira, cortar-lhe-iam o pescoço.

HawaFaye,de 19 anos,
e sua amiga Catherine
Bassen são as alunas
mais novas do primeiro
curso de fotografia do
centro de formação para
mulheres de Fandema.
A sua intenção de abrir
caminho numa profissão
historicamente masculina
simboliza os avanços
dos direitos da mulher
em África. O sonho de
Hawa é ser jornalista.
Em cima, vemo-la
durante um treino
na praia de Tanji.


HAWA FAYE
GAMBIA


“A fotografia dá-nos poder. Às vezes
tenho vergonha quando peço para tirar
uma foto e recusam, mas a máquina
faz-me sentir forte.”
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