National Geographic - Portugal - Edição 235 (2020-10)

(Antfer) #1
ÁFRICA 67

no Norte do Uganda, os pais de Margaret Ayo,
de 13 anos, acabam de negociar o seu casamento
com Joseph Okot, um rapaz com o dobro da sua
idade, em troca de um dote em dinheiro e vacas.
No espaço de poucos dias, Margaret deixou de
brincar com as amigas e passou a governar uma
casa e a servir o seu marido, que aliás só viu duas
vezes antes da cerimónia. “Esta é a minha vida
agora”, diz. Todos os anos, três milhões de rapa-
rigas são obrigadas a casarem-se com homens
adultos na África subsaariana.
Margaret tem as pestanas compridas, o olhar
cândido e o físico de adolescente. Parece frá-
gil, mas não é. Passada uma semana, afasta a
prudência e arma um vendaval. Até protesta à
frente do marido. “Isto está mal, não está? Uma
rapariga deveria ser uma rapariga, deveria poder
chegar ao fim da sua infância, isso seria o correc-
to. Se, no futuro, Deus me der a felicidade de ter
filhas, gostaria de estar com elas e que não se ca-
sassem muito cedo.”
Sentado na outra ponta da cabana, Joseph
olha para ela e baixa a cabeça. Faz riscos na areia
com os dedos e acena com a cabeça.
Mais do que a sua probabilidade de sucesso, a
rebeldia de Margaret anuncia mudanças. Embo-
ra saiba que é difícil escapar aos costumes num
contexto rural, como o seu, urdiu um plano: quer
que as suas filhas vão à escola. Esta é a chave.
Cada ano adicional de educação secundária re-
duz, em média, 7,5% o risco de matrimónio pre-
maturo para uma rapariga. E também de dar à
luz antes dos 18 anos.


A PERSEVERANÇA PERANTE OS OBSTÁCULOS. Arma
de construção maciça, a educação definirá o futuro
de toda a África. Há duas pedras no caminho: a
pobreza e o sol. O continente que menos CO 2 gera é
o que mais vai sofrer as consequências do aqueci-
mento global. Segundo o Banco Mundial, 60% dos
143 milhões de habitantes do mundo que em 2050
abandonarão as suas casas devido à seca, ao avanço
da desertificação ou à multiplicação de fenómenos
meteorológicos extremos serão africanos. Para Mar-
celine Razanantsoa, de 15 anos, as repercussões das
alterações climáticas não acontecerão amanhã.
Estão a acontecer agora. Ela estuda em Betafo,
aldeia das terras altas de Madagáscar, e quer ser
professora, mas o aumento de tufões e cheias, jun-
tamente com a erosão das estradas, causado pelo
abate ilegal de árvores, cujas raízes deixaram de
suster o terreno, afasta-a mais da escola a cada dia
que passa. Literalmente.


“Antes, o caminho era fácil porque viajava por
outro vale, mas agora está cheio de buracos e não
se consegue passar. O caminho novo é mais lon-
go e desmorona-se quando chove.”
O futuro espinhoso de milhões de africanos
tem um denominador comum. Desde o rugir
das tripas de Kandji Diallo, neto do feiticeiro de
uma aldeia no Oeste do Mali, à determinação in-
quebrantável de ser costureiro na Guiné-Bissau
de Paulo Nenque, um dos 52 milhões de órfãos
africanos, ou o desamparo de José Albino, um
rapaz que vive nas ruas da cidade moçambicana
da Beira, a carência económica está embutida no
tutano de milhões de vidas sofridas. Séculos de
exploração internacional e décadas de má gover-
nança, com índices de corrupção insustentáveis,
deixaram milhões de pessoas sem lar.
Embora a pobreza tenha diminuído percen-
tualmente em África (de 54,7% em 1990 para 41%
actualmente), se avaliarmos a situação usando
os padrões dos países ocidentais, onde quem ga-
nha menos de cinco euros por dia é considerado
pobre, 85% dos africanos têm rendimentos infe-
riores a esse valor. Uma das consequências tem
sido um êxodo significativo.
Embora os motivos para migrar não sejam
compartimentos estanques e diversos factores
se misturem frequentemente, como a falta de
oportunidades, de segurança ou de liberdade
nos países de origem, o número de africanos
que emigraram para países do hemisfério nor-
te duplicou nas últimas três décadas. O cresci-
mento tem sido particularmente pronunciado
na Europa, onde no ano passado residiam quase
11 milhões de migrantes nascidos em África.
Enquanto avança por um desfiladeiro escor-
regadio até à sua escola malgaxe, Marceline re-
cusa ser definida pelos seus bolsos vazios. Ago-
ra demora duas horas a chegar à escola e outras
duas a regressar e só pode fazer os trabalhos de
casa ao fim da tarde, quando acaba de tratar
das tarefas domésticas e dos animais. À falta
de secretária, escreve as suas redacções sobre
os joelhos no chão, à luz de uma lanterna, en-
quanto os outros dormem. Mas ela, como o resto
do continente, resiste a ser reduzida à ferida, ao
trauma ou à dificuldade. De manhã, Marceline
evita um buraco no caminho, saltando entre
duas pedras, e quando lhe pergunto que alterna-
tivas contempla se não conseguir ser professora,
engole em seco.
“Serei professora, vais ver. Sei que é difícil,
mas sempre foi assim por aqui.” j
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