10 Le Monde Diplomatique Brasil^ OUTUBRO 2020
A desigualdade no
Brasil é um projeto
O eterno Darcy Ribeiro nos ensinou: “A crise da educação no Brasil não é uma crise, é
um projeto”. Da mesma forma, a manutenção da desigualdade no Brasil não é uma crise,
é um projeto desumano engendrado pelas elites. Enquanto a Constituição Federal de
1988 só funcionar para onerar pobres e aliviar as elites, permaneceremos em crise
POR CHARLES ALCANTARA*
DEMOCRACIA PARA POUCOS
D
esigual, esse é o retrato do Bra-
sil, que há 520 anos cultiva um
sistema de penalização das
classes mais pobres. A crise
causada pela pandemia do novo co-
ronavírus escancarou a realidade
que muitos tentam abafar há anos.
Os mais necessitados são os que car-
regam o país nas costas, a custos al-
tíssimos e sem apoio do Estado.
Fomos criados por uma coloniza-
ção que deixa fortes marcas até hoje,
viramos uma república, enfrentamos
golpes e uma ditadura militar. Em
1985, o fim de um ciclo de 21 anos de
regime autoritário. Em 1988, a nova
Carta Constitucional instauradora
do Estado democrático de direito (a
Constituição Cidadã), que estabele-
ceu bases, direitos, deveres e garan-
tias para toda a sociedade.
A expectativa de um Estado justo e
democrático ainda não se concreti-
zou em pleno 2020. Com cerca de 210
milhões de habitantes, mais de 40 mi-
lhões estão desempregados porque
não conseguiram trabalho ou porque
desistiram de procurar uma vaga.
Mais 27,98 milhões gostariam de tra-
balhar, mas não procuraram empre-
go e outros 12,23 milhões estão deso-
cupados. Sim, mais de 80 milhões de
pessoas estão sem trabalhar num país
que se diz democrático. Os dados fo-
ram divulgados em agosto de 2020 pe-
lo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE). São brasileiros que
vivem na informalidade, sem empre-
go com direitos estabelecidos, sem a
certeza de quanto terão de renda ao
fim do mês para pagar despesas bási-
cas, sem segurança alimentar.
A pandemia escancara mais uma
triste realidade: mais de 67,2 milhões
de brasileiros dependem do auxílio
emergencial de R$ 600 para conse-
guir colocar comida dentro de casa e
ter o mínimo de dignidade. A desi-
gualdade brasileira se estabeleceu
em níveis elevados; o Índice de Gini é
de 0,543, valor considerado alto.
À medida que os mais pobres so-
frem sem a certeza de que consegui-
Um grupo de economistas, espe-
cialistas e entidades, sob a coordena-
ção técnica do professor Eduardo
Fagnani, olhou para onde muitos se
recusam a olhar: a subtributação dos
super-ricos brasileiros. Curioso notar
que esse pequeno punhado de pes-
soas se ajusta bem ao prefixo “super”
quando se refere à fortuna que acu-
mularam, mas, quando se trata de
pagar impostos, o prefixo que lhes
cabe é o extremo oposto: “sub”.
O documento “Tributar os Super-
-Ricos para Reconstruir o País”, lan-
çado no dia 6 de agosto deste ano,
propõe oito medidas que têm o po-
tencial de arrecadar cerca de R$ 292
bilhões por ano, tirando o fardo dos
mais pobres e transferindo para a eli-
te, que historicamente sempre se re-
cusou a contribuir com a redução da
desigualdade no Brasil.
Nas várias vezes em que o mundo
atravessou momentos de crise, as eli-
tes tiveram de dar sua parte, assim
como todos, mas isso nunca se apli-
cou no Brasil. O país é uma espécie de
oásis para milionários. Aqui é possí-
vel aumentar a fortuna e, ao mesmo
tempo, pagar menos impostos.
Se observamos a tabela das alíquo-
tas de Imposto sobre a Renda da Pes-
soa Física (IRPF) é possível notar uma
enorme discrepância. Quem recebe
R$ 4.770 paga o mesmo percentual de
quem recebe R$ 100 mil: 27,5%.
Uma nova tabela do IRPF, com a
introdução de quatro novas alíquo-
tas (30%, 35%, 40% e 45%), combina-
da com a revogação do privilégio tri-
butário concedido às rendas do
capital (isenção da distribuição de
lucros e dividendos e dedução dos ju-
ros sobre capital próprio), é a princi-
pal medida proposta no documento,
com um potencial de incremento na
arrecadação do imposto na ordem de
R$ 158 bilhões por ano na arrecada-
ção. O documento propõe ainda a
isenção do imposto para quem rece-
be até R$ 2.862, cerca de 34% dos
contribuintes.
Em momentos de crise, é comum
os países aumentarem a arrecadação
com impostos progressivos, seguin-
do o princípio da capacidade contri-
butiva. Nos Estados Unidos, as alí-
quotas máximas de imposto de renda
ficaram acima de 75% da metade da
década de 1930 até meados dos anos
- No Reino Unido, a alíquota má-
xima ficou acima de 90% entre as dé-
cadas de 1940 e 1970. Atualmente, a
alíquota máxima nos Estados Unidos
é de 37% e, no Reino Unido, de 45%.
Ou seja, no pós-guerra, toda a socie-
dade ajudou na reconstrução econô-
mica dos países.
No Brasil, a renda e o patrimônio
são pouco tributados; seguem um ca-
minho inverso da tendência mundial,
respondendo por apenas 23% da ar-
rão pagar as contas básicas e colocar
comida na mesa, os super-ricos au-
mentam suas contas bancárias. Da-
dos da Oxfam apontam que, apenas
nos cinco primeiros meses da pande-
mia (março a julho de 2020), o patri-
mônio líquido de 42 bilionários bra-
sileiros cresceu US$ 34 bilhões (cerca
de R$ 187 bilhões pela cotação atual
do dólar). Esse valor equivale a seis
anos do Bolsa-Família.
Enquanto isso, assistimos à popu-
lação desamparada em filas a perder
de vista nas agências bancárias de to-
do o país em busca do auxílio emer-
gencial para saciar a fome, que, aliás,
cresceu drasticamente de acordo
com a Pesquisa de Orçamentos Fami-
liares (POF) do IBGE, divulgada em 17
de setembro. A pesquisa mostra que,
depois de uma década de recuo contí-
nuo, a fome voltou à cena como uma
das protagonistas da tragédia brasi-
leira. Mais de 10 milhões de pessoas
em situação de insegurança alimen-
tar grave e mais de 74 milhões em si-
tuação de insegurança alimentar leve
ou moderada, somando quase 85 mi-
lhões de pessoas atingidas ou amea-
çadas pela fome no Brasil.
Mas não é só de tragédia que vive
o Brasil. Há também muita opulên-
cia, fartura. Falei dos 42 bilionários
brasileiros que faturaram, em cinco
meses, o que o Brasil gasta com 14
milhões de famílias em seis anos.
Se há 85 milhões de pessoas atin-
gidas ou ameaçadas pela fome, ao
menos há 238 pessoas que, juntas,
têm uma fortuna de R$ 1,6 trilhão.
Esse é o número de bilionários brasi-
leiros que consta da lista da Forbes,
versão 2020. Dá para imaginar uma
fortuna de R$ 1,6 trilhão nas mãos de
238 pessoas, num país com mais de
10 milhões de pessoas passando fo-
me agora, ontem, hoje, amanhã? Dá
para entender por que a primeira pa-
lavra deste texto é o adjetivo
“de sig u a l”?
É urgente e necessário redistri-
buir renda para minimizar a brutal
desigualdade que está aí, visível, gri-
tante, às escâncaras por toda parte,
nos rincões e nas grandes cidades, ig-
norada pela maioria dos governantes.
Para os brasileiros forjados nas difi-
culdades e durezas da vida, é preciso
garantir o mínimo previsto num Es-
tado que se proclama democrático e
de direitos.
Como fazer 67 milhões de pes-
soas, que hoje recebem um auxílio
emergencial, terem uma renda básica
financiada por um país no auge de
uma crise econômica, social e sanitá-
ria? Há meses governo e parlamenta-
res buscam a resposta; porém, nos lu-
gares errados. Diversas possibilidades
que só aumentam o abismo que sepa-
ra ricos e pobres foram aventadas,
como a criação de um novo imposto
sobre transações digitais (uma espé-
cie de CPMF, que agrava a regressivi-
dade do sistema tributário), a redu-
ção do investimento básico nas áreas
de saúde e educação, a extinção de
programas assistenciais, o congela-
mento do reajuste anual do salário
mínimo, o congelamento salarial do
funcionalismo público.
A nata política brasileira só não
pensou na possibilidade mais óbvia:
cumprir a Constituição Federal de
1988 e cobrar impostos de forma
progressiva. Diz o parágrafo 1º do
artigo 145: “Sempre que possível, os
impostos terão caráter pessoal e se-
rão graduados segundo a capacidade
econômica do contribuinte [...]”. Es-
se é o chamado princípio constitu-
cional da capacidade contributiva,
que se pode resumir no mais genuí-
no e singelo primado de justiça:
quem tem mais paga mais.
Se há 85 milhões de
pessoas atingidas ou
ameaçadas pela fome,
ao menos há 238 pessoas
que, juntas, têm uma
fortuna de R$ 1,6 trilhão
.