Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 159 (2020-10)

(Antfer) #1

OUTUBRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 17


PERIFERIAS DE SÃO PAULO


Uma geração emergente


de cientistas sociais e


produtores culturais


Está se formando uma nova geração de jovens das periferias que usam seu tempo
na escola secundária e na universidade para formar novas redes, criar espaços
alternativos para produção intelectual e cultural e formar coletivos onde
elaboram novas subjetividades

POR TERESA CALDEIRA*

A


s periferias de São Paulo têm
passado por processos de
transformação intensa, sobre-
tudo a partir dos anos 1990.
Esses processos mudaram sua paisa-
gem urbana e aspectos significativos
da vida de seus moradores, e as
transformaram em espaços muito
mais heterogêneos do que foram no
passado. A pesquisa “Periferias de
São Paulo: heterogeneidade e novas
formas de vida coletiva”,^1 que coor-
denei em 2018, tanto estudou essas
transformações como tentou fazer
parte delas.
Provavelmente, uma das mudan-
ças mais radicais acontecendo nas
periferias de São Paulo hoje em dia
seja a da configuração educacional
das novas gerações. Os jovens que
nasceram nas periferias nas últimas
três décadas têm um nível educacio-
nal muito mais elevado do que o de
seus pais, e muitos deles estão che-
gando à universidade. Embora um
acesso equitativo à educação para jo-
vens de diferentes classes sociais ain-
da esteja longe de ser realidade no
Brasil e a qualidade do ensino públi-
co seja em geral baixa, é claro que
houve mudanças significativas. A
porcentagem de jovens dos dois quin-
tis de renda mais baixa chegando ao
ensino superior no Brasil subiu de 2%
em 1995 para 12% em 2014.^2 Num
bairro da periferia leste de São Paulo,
onde realizo pesquisas desde o final
dos anos 1970, a porcentagem de jo-
vens com educação secundária subiu
de 0,77% em 1980 para 26% em 2013.
A porcentagem daqueles que chega-
ram à universidade subiu de zero em
1980 para 5,73% em 2013.
A formação da equipe dessa pes-
quisa foi determinada pela decisão
de que a maioria dos pesquisadores
fosse das periferias e fizesse parte da
primeira geração em suas famílias a
concluir o curso superior. De fato,


apenas um membro da equipe for-
mada por Artur Santoro, Danielle Re-
gina de Oliveira, Katia Ramalho Go-
mes, Luiz Paulo Ferreira Santiago,
Mayara Amaral dos Santos e Renata
Adriana de Sousa não tinha esse per-
fil. São cientistas sociais, comunica-
dores, educadores e produtores cul-
turais oriundos das periferias.
A ampliação do acesso à universi-
dade foi possível graças a uma série
de programas adotados especial-
mente durante os governos federais
do PT (Enem, ProUni, Sisu, Fies), ex-
pansão de universidades federais e
adoção de políticas de ação afirmati-
va e cotas por várias universidades.
Mas é claro que o aumento do acesso
à educação formal não se traduz di-
retamente nem em integração social
nem em mobilidade social. O que es-
sa e outras pesquisas demonstram é
que a questão da inclusão é muito
mais complexa do que a do acesso e
que a presença na universidade de jo-
vens das periferias é muito desafia-
dora. Isso fica evidente no texto de
Mayara Amaral dos Santos, que ana-
lisa vários dos desafios enfrentados
por jovens das periferias não só para
entrar na universidade, como tam-
bém para permanecer em espaços
que lhes são hostis.
De fato, as tensões e conf litos ge-
rados pelas iniciativas de democrati-
zação e equalização do ensino são
bastante conhecidos em vários con-
textos internacionais, como o pro-
cesso de desmonte da segregação ra-
cial nas escolas e a adoção de cotas
nas universidades nos Estados Uni-
dos durante e após o movimento de
direitos civis dos anos 1960; a abertu-
ra de todas as instituições de ensino
na Índia, que desestruturou o siste-
ma de acesso baseado em castas com
a adoção de cotas ainda na década de
1930; e a luta pela descolonização do
curriculum universitário na África do

Sul pós-apartheid. Não há democra-
tização de ensino sem conf litos e ten-
sões. Mas o que o caso da Índia pare-
ce indicar é não apenas uma
significativa expansão do acesso à
educação a todas as camadas sociais
após quase um século de cotas, mas
também a diminuição dos conf litos
intercastas nos espaços educacionais
após a normatização da inclusão no
decorrer dessas décadas de acesso
amplo à educação.
Alguns dos efeitos da presença
ampliada de jovens das periferias em
espaços educacionais são sua politi-
zação, a organização em diversos ti-
pos de coletivos e associações e seu
engajamento em variadas formas de
produção cultural. Está se formando
uma nova geração de jovens das peri-
ferias que usam seu tempo na escola
secundária e na universidade para
formar novas redes, criar espaços al-
ternativos para a produção intelec-
tual e cultural e formar coletivos on-
de elaboram novas subjetividades.
Esses jovens são protagonistas de no-
vos grupos feministas, grupos de
afrodescendentes, de LGBTQs. São
produtores culturais dos mais varia-
dos gêneros, responsáveis pela cria-
ção de vibrante cena cultural por to-
das as periferias. A maioria deles opta
por permanecer nas periferias, dis-
cute o que é ser um sujeito periférico
e o que é produzir atividades cultu-
rais nesses espaços. Katia Ramalho
Gomes aprofunda a análise desses
aspectos. Artur Santoro analisa os
trânsitos de LGBTQs entre a periferia
e o centro e ressalta o caráter perfor-
mático da identidade de gênero. Luiz
Paulo Ferreira Santiago analisa o bai-
le funk, concebido como um espaço
de contradições e uma prática con-
tra-hegemônica. Em outro texto que
faz parte deste dossiê, Renata Adria-
na de Sousa analisa a crescente com-
plexidade e diversificação no proces-

so de autoconstrução. Ela mostra que
o habitar nas periferias atualmente
envolve transitar por diversas possi-
bilidades de moradia, passando-se
frequentemente pelas condições de
inquilino, proprietário e ocupante de
terra, sempre num estado de signifi-
cativa incerteza.
Outra dimensão da presença de
jovens das periferias na universida-
de, nos coletivos e nessa pesquisa é a
problematização da produção de co-
nhecimento. Essa geração de intelec-
tuais e acadêmicos das periferias tem
o potencial de transformar os modos
pelos quais se produz conhecimento
sobre esses espaços, desequilibrando
hierarquias há muito estabelecidas e
abrindo novas perspectivas de críti-
ca, análise e conceptualização. Esse
processo emergente e em formação é
sem dúvida tenso e está longe de es-
tar totalmente delineado, mas, a meu
ver, é um dos aspectos mais significa-
tivos dessa pesquisa.
Questões sobre o significado da
produção de conhecimento sobre as
periferias feitas por seus próprios
moradores, indagações sobre a rela-
ção dessa produção com outras for-
mas de conhecimento sobre as peri-
ferias e problematização da relação
dos pesquisadores com a coordena-
dora do projeto foram constantes nas
reuniões semanais de pesquisa.
Questionamentos sobre a posiciona-
lidade dos pesquisadores em relação,
de um lado, a pessoas das periferias
que se disponibilizaram a participar
da pesquisa ou se recusaram a fazê-
-lo e, de outro, em relação à coorde-
nadora foram recorrentes e nem sem-
pre de fácil solução. Foi no contexto
dessas discussões que decidimos
conjuntamente que a pesquisa seria
um espaço para os pesquisadores de-
senvolverem sua própria voz e auto-
ria e que seus primeiros produtos se-
riam, de um lado, textos de autoria
individual sobre os temas que esta-
vam trabalhando e, de outro, pod-
casts para a divulgação dos resulta-
dos entre as redes de coletivos e
moradores das periferias.

*Teresa Caldeira é professora da Univer-
sidade da Califórnia em Berkeley. Leia mais
sobre a pesquisa e artigos de seus autores
no especial “Periferias de São Paulo”, dis-
ponível em: diplomatique.org.br/especial/
periferiasp.

1 A pesquisa contou com o apoio da Fundação
Tide Setubal e foi realizada durante minha fi-
liação como pesquisadora visitante Fapesp
junto à Fundação Getulio Vargas (Cepesp) e
a o N E V- U S P.
2 Elizabeth Balbachevsky, Helena Sampaio e
Cibele Yahn de Andrade, “Expanding access
to higher education and its (limited) conse-
quences for social inclusion: the Brazilian Ex-
perience” [Expandindo o acesso ao ensino
superior e suas (limitadas) consequências
para a inclusão social: a experiência brasilei-
ra], Social Inclusion, v.7, n.1, p.7-17, 2019.

.
Free download pdf