Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 159 (2020-10)

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18 Le Monde Diplomatique Brasil^ OUTUBRO 2020


A CONTESTADA REELEIÇÃO DO PRESIDENTE LUKASHENKO


Na Bielorrússia, a


juventude urbana


na linha de frente


Pressionado pelas ruas a deixar o poder, o presidente
bielorrusso, Alexander Lukashenko, dobrou-se às
exigências de Moscou, que quer uma reforma
constitucional. Algumas semanas antes, os manifestantes,
prevenidos pelo precedente ucraniano, recusaram
qualquer ingerência, esperando que seu grande
número fosse suficiente para depor o presidente

POR LOÏC RAMIREZ*, ENVIADO ESPECIAL

M


eados de agosto de 2020. Na
televisão, as imagens das
manifestações se repetem.
“Isso vai acabar logo”, lança
Stas L., sem nem mesmo olhar para a
tela. De costas para as notícias, senta-
do em um bar em Braguin, no sul da
Bielorrússia, ele e seus amigos, todos
na casa dos 30 anos, conversam en-
quanto tomam uma garrafa de vodca.
Já se passavam cinco dias desde que
uma onda de protestos sem preceden-
tes varria o país. A sequência de even-
tos provaria que Stas L. estava errado:
em meados de setembro, os protestos
prosseguiam, em particular nas uni-
versidades da capital bielorrussa e nas
marchas que ainda reúnem centenas
de milhares de pessoas, em Minsk e
outras grandes cidades do país.
A reeleição de Alexander Luka-
shenko em 9 de agosto de 2020 e os
protestos que se seguiram colocaram
a Bielorrússia no centro das atenções
da mídia internacional. O presidente
entra em seu sexto mandato conse-
cutivo desde 1994, depois de obter
80,23% dos votos em uma eleição
permeada por fraudes. Assim, derro-
tou sua principal rival, Svetlana
Tikhanovskaya, que substituiu seu
marido de última hora, preso em
maio por “perturbar a ordem públi-
ca”, e junto da qual se alinhavam as
equipes de dois outros candidatos,
Valery Tsepkalo e Viktor Babariko, re-
presentados por, respectivamente,
sua esposa, Veronika, e sua gerente
de campanha, Maria Kolesnikova,
após a fuga para Moscou do primeiro
e a prisão do segundo.

O ESPANTALHO UCRANIANO
Após a votação, confrontos entre jo-
vens manifestantes e as forças da or-

dem deram o ritmo das noites na ca-
pital. Por três dias, a internet foi
cortada. Milhares de prisões e inú-
meros depoimentos sobre espanca-
mentos perpetrados em delegacias
reforçaram a rejeição do presidente,
que nunca havia usado métodos de
intimidação em tamanha escala.
Após a eleição presidencial de 2010,
foram centenas de prisões, e a oposi-
ção foi discretamente decapitada em
tribunais nos meses seguintes.
Mesmo aqui, nesta pequena cida-
de, é possível sentir o calor das auto-
ridades. Ao cair da noite, um punha-
do de policiais começa a patrulhar a
praça principal da vila enquanto um
de seus carros se posiciona na aveni-
da para observação. Um destaca-
mento desproporcional para esta ci-
dade de 3 mil habitantes. Isso se deve
à proximidade da fronteira com a
Ucrânia? Ou ao medo de que as ma-
nifestações, que também estão ocor-
rendo em Gomel, capital da região lo-
calizada a 100 quilômetros de
distância, cheguem aqui?
Trabalhando como operário no
setor rodoviário, Stas conheceu ape-
nas um presidente até hoje: Luka-
shenko. “Votei em Tikhanovskaya,
mas não vou protestar! Para nós, bie-
lorrussos, o mais importante é a paz,
ninguém quer um ‘Maidan’”, disse. O
jovem refere-se à revolta ucraniana
que, durante o inverno de 2013-2014,
conseguiu derrubar o presidente Vik-
tor Yanukov ych, antes de levar o país
a uma guerra civil.^1 O espantalho agi-
tado pelo poder se alimenta de um
medo real presente na população.
Por sua vez, os amigos de Stas reve-
lam sua escolha nas eleições. Muitos
dizem que optaram por Tikha-
novskaya; outros, pelo voto em bran-

co. “Votei em Lukashenko”, respon-
deu um dos presentes – revelação que
surpreendeu o resto do grupo. “É
mesmo? Você votou nele?” “Sim, cla-
ro.” Sem maiores explicações ou de-
bates, os copos se esvaziam e as con-
versas fúteis recomeçam.
Ampliados por fraudes eleitorais
ou reduzidos a quase nada, como às
vezes argumentam alguns adversá-
rios de forma caricatural (defende-
ram, durante a campanha, a tese de
um Lukashenko com 3% de intenção),
os votos a favor do líder são dados
complicados de analisar. “Os estudos
sociológicos estimam que sejam 60%,
provavelmente muito menos na capi-
tal, onde a oposição sempre se benefi-
ciou de um núcleo duro”, explica Bru-
no Drweski, historiador e professor do
Instituto Nacional de Línguas e Civili-
zações Orientais (Inalco). Para os pes-
quisadores Stephen White e Elena Ko-
rosteleva, o perfil típico dos eleitores
de Lukashenko seria “predominante-
mente acima de 60 anos, com um ní-
vel de escolaridade bastante baixo,
em média”, e, sobretudo, rural.^2 Por
outro lado, seus oponentes seriam
“jovens”, “trabalhadores do setor pri-
vado”, “com alto nível de escolarida-
de” e “residentes nas grandes cida-
des”. Uma oposição geracional,
portanto, associada ao corte geográfi-
co. Para Aleksei Dzermant, um cien-
tista político próximo ao governo, “o
eleitorado do presidente se encontra
entre os servidores públicos, aqueles
que trabalham para o Estado, e entre
a classe trabalhadora”.

“O PAÍS MUDOU. ELE, NÃO”
No entanto, parece haver ocorrido
uma erosão do apoio a Lukashenko,
inclusive entre estratos que tradicio-
nalmente o apoiavam. Um estudo so-
bre a contagem manual dos resulta-
dos exibidos nos frontões de
novecentas assembleias de voto (um
quarto dos eleitores), corrigidos para
uma participação e taxas de votação
por correspondência anormalmente
elevadas, sugere uma pontuação de
45% para Tikhanovskaya, contra 43%
para Lukashenko.^3 Outras estimati-
vas foram feitas, mas todas coinci-
dem com um resultado muito mais
apertado do que o anunciado pela co-
missão eleitoral central. “Sim, votei
nele no passado, mas isso não é mais
possível”, explica Viktor, na casa dos
50 anos e professor de francês em
uma escola em Gomel.

“Não se pode falar nada contra o
governo, sob pena de ter problemas
no local de trabalho. É sufocante.
Não que eu negue tudo o que ele fez,
mas o país mudou e ele continua o
mesmo.” “Pai chicote”, que, durante
visitas surpresa a fábricas ou fazen-
das, despede e substitui um diretor
incompetente ou um ministro consi-
derado frouxo com um estalar de de-
dos, Lukashenko cultivou uma ima-
gem paternalista que há muito atrai a
sociedade bielorrussa. Essa retórica,
porém, passou a incomodar. Durante
a campanha, suas declarações sobre
a incapacidade de uma mulher de go-
vernar o país e seus insultos e amea-
ças contra os oponentes saíram pela
culatra e foram ridicularizados du-
rante os protestos.

DO VERMELHO E VERDE
AO VERMELHO E BRANCO
A degradação econômica dos últimos
anos tem relação com o aumento do
descontentamento. Eleito generosa-
mente em 1994 com 80% dos votos,
Lukashenko pôs fim às impopulares
privatizações em massa. O retorno
do Estado na direção da economia
impulsionado por ele teve algum su-
cesso. Enquanto as indústrias em ou-
tras ex-repúblicas soviéticas estavam
fechando e as desigualdades dispara-
vam, a Bielorrússia voltava a crescer
em 1996 e mantinha certos setores de
ponta, como a produção de tratores e
máquinas operatrizes. O país tam-
bém salvou sua agricultura, graças a
importantes investimentos públicos
em fazendas coletivas, responsáveis
por cerca de 80% da produção, 90%
exportada para a Rússia.^4 Na década
de 2000, o país aproveitou os altos
preços dos hidrocarbonetos, quando
Moscou autorizou Minsk a refinar e
reexportar o petróleo, antes vendido
a baixo custo, a preços de mercado
mundial, ao mesmo tempo que for-
necia gás a preços amigáveis.
No entanto, a crise de 2008 e a
queda dos preços, que reduziram au-
tomaticamente o nível de subsídios,
corroeram esse maná. Na década de
2000 o país registrou taxas de cresci-
mento anual de 7,2% em média, mas
seu PIB cresceu apenas 1,6% ao ano
desde a quebra do mercado de ações.
As manifestações de 2017 contra a
multa aos desempregados – cerca de
460 rublos (R$ 975) para pessoas sem
emprego declarado por mais de seis
meses – aparecem em retrospecto co-
mo um prenúncio da crise atual. A
prisão de candidatos durante a cam-
panha, a escalada de fraudes e a pro-
liferação de imagens de feridos nas
redes sociais, após a reativação da in-
ternet no país, aumentaram a lista de
indignação.
Os protestos não são, por enquan-
to, acompanhados de um programa

Os protestos não
são, por enquanto,
acompanhados de
um programa político
e econômico preciso

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