OUTUBRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 25
um grupo parlamentar hostil à China
- a grande moda do momento.
A União Europeia não conseguiu
definir uma política comum a respei-
to do 5G, principalmente porque a
questão foi tratada em termos de se-
gurança nacional, área na qual os Es-
tados membros são soberanos. Teria
sido mais judicioso abordá-la pelo
ângulo da política industrial e das re-
lações internacionais. Assim, poderia
nascer um gigante europeu único de
5G, filho da Nokia e da Ericsson, ge-
nerosamente subsidiado para assu-
mir a missão de igualar os esforços da
Huawei em termos de P&D. Parece
improvável que as coisas caminhem
nessa direção, embora a Comissão
Europeia, sob pressão da França e da
Alemanha, tenha mostrado recente-
mente alguma inclinação para aban-
donar sua obsessão – a competitivi-
dade – e levar em consideração o
contexto geoeconômico.
A Alemanha, o único grande país
europeu que ainda não revelou seu
plano para o 5G, prometeu chegar a
uma decisão no outono de 2020. A
classe política está dividida sobre a
questão, e até o partido de Angela
Merkel está rachado. Os diplomatas
norte-americanos lotados em Berlim
não perdem nenhuma oportunidade
de lembrar a seus interlocutores
quanto poderia lhes custar sua indul-
gência para com a Huawei.
A DIPLOMACIA DO ENDIVIDAMENTO
Na lenda criada por Trump, a empre-
sa de Shenzhen é a própria encarna-
ção do “comunismo de conivência”
chinês, mas o fenômeno Huawei pe-
de outras leituras. Uma das mais con-
vincentes é aquela proposta pelo eco-
nomista Yun Wen. O atual presidente
da companhia, Ren Zhengfei, parece
ser, por trás da fanfarronice, do gosto
por aforismos maoistas e dos pendo-
res nacionalistas, um fino conhece-
dor das sutilezas da geopolítica. Sob
sua liderança, a Huawei se estabele-
ceu em regiões difíceis – o interior da
China, na década de 1990, e depois
alguns países do Sul onde as perspec-
tivas de lucro eram pequenas – e os
transformou em frentes para atacar
mercados mais promissores. À medi-
da que a China estendia seus tentá-
culos na África e na América Latina, a
Huawei e sua compatriota ZTE agar-
ravam-se a esse movimento para
construir suas redes, obras indireta-
mente beneficiadas pelos emprésti-
mos concedidos pela China aos go-
vernos locais para ajudá-los a
financiar grandes projetos de in-
fraestrutura. Segundo Yun Wen,^4 no
caso da Huawei, essa diplomacia do
endividamento não teria tido apenas
efeitos negativos. Não apenas as re-
ceitas geradas pela empresa nos paí-
ses do Sul são relativamente modes-
tas em comparação com outros
mercados, mas sua instalação nessas
regiões, em parte impulsionada pelo
espírito de “internacionalismo ter-
ceiro-mundista” caro a Mao, fez que
ela precisasse treinar no local muitos
engenheiros e técnicos qualificados.
Os Estados Unidos sempre foram
uma área de alto risco para a Huawei,
muito antes da presidência de Trump
e mesmo da administração de Barack
Obama. Em 2003, a companhia chi-
nesa foi atacada por sua principal
concorrente nos Estados Unidos, a
Cisco, por violação de patente. Essa
foi a primeira de muitas derrotas.
Após ser proibida de assumir qual-
quer participação ou controle em em-
presas norte-americanas, a Huawei
poderia ser impedida de atender seus
próprios clientes e lançar novos pro-
dutos nos Estados Unidos. Desde o
início, uma acusação martelou como
um refrão: a de que a Huawei trabalha
de mãos dadas com o Exército chinês.
Em 2011, uma revelação feita pelo jor-
nal The Wall Street Journal (27 out.) de
que a empresa teria negociado com o
Irã, ignorando as sanções dos Estados
Unidos vigentes contra esse país, veio
somar-se ao dossiê contra a compa-
nhia. Em 2013, a Huawei anunciou
sua retirada dos Estados Unidos, e ho-
je sua presença em Washington resu-
me-se a um exército de lobistas.
É razoável perguntar por que a
campanha dos Estados Unidos con-
tra a Huawei só se intensificou re-
centemente, uma vez que os primei-
ros tiros foram disparados há
dezessete anos. No final de 2018, o
governo dos Estados Unidos ordenou
a prisão da filha de Zhengfei, Meng
Wanzhou, diretora financeira da
Huawei, durante uma escala no Ca-
nadá. Desde então, o país vem se de-
dicando a demolir o grupo, com san-
ções cada vez mais severas. Trump
pediu ao fundo de pensão oficial do
governo que não investisse em em-
presas chinesas. Os contratados do
governo federal precisam provar que
não têm nenhuma conexão comer-
cial com a Huawei, e as empresas
chinesas listadas em Bolsa nos Esta-
dos Unidos são obrigadas a publicar
suas contas e a declarar qualquer
contato com o governo da China. Di-
versos fatores econômicos e geopolí-
ticos se combinam para explicar a
ofensiva dos Estados Unidos.
No plano geopolítico, as revela-
ções de Edward Snowden em 2013 so-
bre as atividades da Agência de Segu-
rança Nacional dos Estados Unidos
(NSA) dão uma pista interessante, co-
mo lembra Yun Wen. Em 2010, com o
codinome Operação Shotgiant, a NSA
invadiu os servidores da Huawei com
dois objetivos: encontrar vestígios
das possíveis ligações da empresa
com o Exército chinês – a busca não
deve ter dado em nada, pois nenhum
documento vazou para a mídia – e
identificar falhas de segurança em
seus equipamentos, o que permitiria
aos serviços de inteligência dos Esta-
dos Unidos espionar alguns de seus
Estados clientes, como Irã e Paquis-
tão. Nos documentos vazados por
Snowden, a NSA não escondia suas
intenções: “A maioria de nossos alvos
se comunica por meio de dispositivos
fabricados pela Huawei. Queremos
ter certeza de que conhecemos bem
esses produtos, para poder operá-los
e ter acesso a essas linhas”. Guo Ping,
presidente da Huawei por rotação, fez
um comentário bastante lógico: “[A
Huawei] é um espinho no pé do go-
verno norte-americano, pois o impe-
de de espionar quem ele quiser”.
Na verdade, se a Huawei vencesse
a corrida 5G, a supremacia norte-a-
mericana no campo da inteligência
estaria seriamente comprometida,
no mínimo pelo fato de que a compa-
nhia chinesa provavelmente estaria
menos disposta a cooperar de manei-
ra informal com as agências dos Esta-
dos Unidos do que, por exemplo, suas
concorrentes europeias.
No plano econômico, para além da
infraestrutura material exigida pelo
5G, é preciso pensar na malha de di-
reitos de propriedade intelectual que
essa tecnologia implica. Antes de mais
nada, o 5G é um padrão. Cada rede ou
aparelho que pretenda operá-lo preci-
sa respeitar suas especificações técni-
cas, o que passa necessariamente pela
utilização de tecnologias patentea-
das. Um smartphone moderno com
Wi-Fi, touchscreen, processador etc.
está protegido no mínimo por 250 mil
patentes (esse número, de 2015, deve
ser ainda maior hoje). Segundo uma
estimativa de 2013, 130 mil dessas pa-
tentes seriam “patentes essenciais”
(Standard-Essential Patents, SEP), co-
mo são classificadas aquelas que per-
mitem a conformidade com uma nor-
ma técnica como o 5G.
No campo das tecnologias mó-
veis, o número e a distribuição geo-
gráfica dos titulares de patentes es-
senciais evoluíram à custa da
América e da Europa ocidental e em
benefício dos países asiáticos.^5 E pa-
tentes significam royalties. A norte-a-
mericana Qualcomm, grande vence-
dora do 2G e de vários outros padrões
importantes, tira dois terços de seu
faturamento da China, principal-
mente da Huawei. Sozinha, a Huawei
gastou desde 2001 mais de US$ 6 bi-
lhões em royalties, 80% dos quais fo-
ram para empresas norte-america-
nas. Esses valores desproporcionais
acabaram fazendo o governo chinês
reagir. Após multar a Qualcomm em
US$ 975 milhões por abuso de posi-
ção dominante em 2015, ele conse-
guiu, três anos depois, bloquear a
tentativa da companhia de adquirir a
holandesa NXP, argumentando que a
operação reduziria ainda mais a mar-
gem de manobra de suas empresas.
“ESTAMOS EM GUERRA”
Mas as coisas mudaram. A Huawei
está agora entre as maiores detento-
ras de patentes essenciais relaciona-
das ao 5G. Isso não a impede de con-
tinuar criticando fortemente o
sistema mundial de propriedade in-
telectual – Ping pediu uma revisão
das regras desse “clube internacio-
nal” em um sentido mais igualitário e
benéfico para todos, comparando os
royalties a “pedágios impostos por
bandidos de estradas”. É verdade que
a natureza “essencial” das patentes
detidas pela empresa é discutível.
Como apontou um analista, se o
smartphone fosse um avião, as pa-
tentes da Nokia e da Ericsson cobri-
riam o motor e o sistema de navega-
ção, enquanto as da Huawei
protegeriam os assentos e os carri-
nhos de refeição... Porém, seja qual
for o poder de suas patentes, a Hua-
wei conseguiu se livrar de sua situa-
ção de dependência.
Para a China, tentar tornar-se cre-
dora (em vez de tomadora) de patentes
faz sentido do ponto de vista econômi-
co. Foi assim que ela conseguiu preen-
cher o fosso que a separava dos Esta-
dos Unidos em termos de direitos
líquidos arrecadados: enquanto em
1998 as empresas norte-americanas
recebiam 26,8 vezes mais royalties do
que as chinesas, em 2019 essa propor-
ção era de apenas 1,7.^6 Logicamente, a
China também começou a pesar mais
nos organismos internacionais de ór-
gãos de padronização.^7 A Comissão
Eletrotécnica Internacional (Interna-
tional Electrotechnical Commission)
e a União Internacional de Telecomu-
nicações (International Telecommu-
nications Union) são dirigidas por chi-
neses, e o mandato de três anos do
primeiro presidente chinês da Organi-
zação Internacional de Padronização
(International Organization for Stan-
dardization, ISO) terminou em 2018.
Na ONU, a China tem se mostrado
muito ativa no estabelecimento de
padrões para tecnologias de reco-
nhecimento facial. Na ISO, esteve
particularmente interessada nas ci-
dades conectadas, terreno favorito da
Alibaba, o que deixou o Japão preo-
O que está em jogo
no atual debate sobre
o 5G vai muito além
da questão do domínio
chinês sobre esse
padrão de telefonia
.