Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 159 (2020-10)

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26 Le Monde Diplomatique Brasil^ OUTUBRO 2020


tar-industrial, que prefere fazer o pa-
pel de “pombos”. E por um bom moti-
vo: para esse campo, a China
representava um mercado lucrativo.
Em 2019, a Huawei sozinha comprou
US$ 19 bilhões em material eletrôni-
co de fabricantes dos Estados Unidos.
Impedir que fabricantes nacionais
negociem com a China significa favo-
recer seus concorrentes estrangeiros.
Enquanto havia esperança de uma
efetivação completa do acordo co-
mercial entre a China e os Estados
Unidos assinado em janeiro, o campo
dos “pombos”, no qual se destaca o
secretário do Tesouro, Steven Mnu-
chin, conseguiu moderar o ardor an-
tichinês de Navarro e Lighthizer. Com
a deterioração da situação geopolítica
e a crise da Covid-19 – cuja responsa-
bilidade Trump imputa à China –, es-
sa perspectiva está se enfraquecendo.
Assim, a Huawei corre o risco de per-
manecer como uma moeda de troca,
para trocas que jamais ocorrerão.
Nesse ínterim, as medidas de reta-
liação se multiplicam. No início de
agosto, Pompeo anunciou o fortaleci-
mento do programa Rede Limpa
(Clean Network), cujo objetivo é lim-
par a internet da “inf luência nefasta”
do Partido Comunista Chinês. Poucos
dias depois, a Casa Branca privou a
Huawei de qualquer possibilidade de
uso de tecnologias que envolvam dire-
ta ou indiretamente empresas norte-
-americanas, o que promete ser um
grande quebra-cabeça para continuar
fabricando seus produtos. Isso por-
que, a despeito das somas colossais
investidas em pesquisa, dos batalhões
de engenheiros e da apologia da ino-
vação “interna”, há componentes que
a Huawei não consegue produzir por
conta própria nem comprar na China.
É o caso dos chips ultramodernos
Kirin, projetados na China, porém
gravados no exterior, que são cruciais
para as funcionalidades baseadas em
inteligência artificial. Há quinze
anos empenhada em competir com o
Vale do Silício, a China fez progressos
consideráveis nessa área, a ponto de
dominar claramente algumas tecno-
logias, como o reconhecimento fa-
cial. No entanto, seu principal trunfo
até hoje era sua capacidade de coletar
massas gigantescas de dados para
alimentar e treinar seus algoritmos
de aprendizagem automática – uma
coleta realizada por seus gigantes di-
gitais, mas também possibilitada pe-
la exploração de uma mão de obra es-
tudantil barata. Esse modelo, no
entanto, foi criado para o mundo de
antes, um mundo no qual a China
podia contar com entregas ininter-
ruptas de equipamentos de alto de-
sempenho feitos em Taiwan ou nos
Estados Unidos. Hoje, a ruptura des-
sas cadeias de suprimentos coloca
em risco a inteligência artificial chi-

nesa como um todo.^9 Ao declarar
guerra à Huawei, os norte-america-
nos talvez estejam tentando tanto
impedir que ela tenha seus próprios
semicondutores, por meio da subsi-
diária HiSilicon, quanto conter seu
avanço no 5G.
Também na política industrial
chegou a hora da ofensiva norte-ame-
ricana. Os parlamentares decidiram
reservar fundos para a construção de
redes em arquitetura aberta que pos-
sam vir a substituir as da Huawei e
suas concorrentes. Paralelamente, o
orçamento alocado aos fabricantes
locais de semicondutores, de acordo
com a lei “CHIPS for America”, atual-
mente em discussão no Congresso,
foi elevado para US$ 10 bilhões. Os
Estados Unidos parecem ter entendi-
do que este período de tensão geopo-
lítica não é o momento ideal para en-
fraquecer seus arautos digitais. O
Vale do Silício aproveita: foi a conse-
lho do dono do Facebook que Trump
decidiu atacar o aplicativo TikTok.
De modo geral, a reação chinesa
foi menos agressiva. É preciso dizer
que a China não esperou o ataque dos
Estados Unidos para fortalecer sua
soberania tecnológica à base de bi-
lhões de dólares de dinheiro público,
ainda que, nesse ínterim, a crise sani-
tária tenha dominado parte desses
fundos (a instalação do 5G, em parti-
cular, atrasou). Em maio, logo após o
governo Trump anunciar novas res-
trições à Huawei e seus fornecedores,
Xi Jinping anunciou um plano de US$
1,4 trilhão para garantir a liderança
chinesa em várias tecnologias-chave
até 2025. As duas expressões mais fa-
ladas na China hoje são “desestadu-
nização” – da cadeia de suprimentos
e da infraestrutura tecnológica – e
“economia de dupla circulação” –
uma nova direção política que con-
siste em articular a reorientação do
mercado doméstico e o desenvolvi-
mento de tecnologias de ponta ade-
quadas à exportação.
Enquanto vão de vento em popa
as discussões em torno da venda pela
TikTok de suas atividades norte-ame-
ricanas, o governo chinês aumentou
a lista de tecnologias cuja exportação
pretende controlar, incluindo algorit-
mos de recomendação de conteúdo,
reconhecimento de voz e muitas ou-
tras aplicações de inteligência artifi-
cial. Em reação ao programa norte-a-
mericano Clean Network, a China
também acaba de anunciar o lança-
mento de sua própria rede interna-
cional, a Global Data Security Initia-
tive, que visa combater a vigilância e
a espionagem dos Estados Unidos.
Por enquanto, a Huawei vai bem.
Desde a prisão de Wanzhou, anteci-
pando sanções mais duras, a empre-
sa começou a acumular estoques,
que podem durar de dez meses a dois

anos – mas algumas peças estarão
obsoletas até lá. Ela também tem na
sacola uma pilha de contratos de re-
des 5G. Por fim, ciente de que seus
aparelhos logo não terão mais acesso
às atualizações do Android, ela deci-
diu desenvolver seu próprio sistema
operacional: o Harmony OS.
Seja qual for o destino da Huawei
no futuro próximo, a mensagem che-
gou alto e claro à China, à Rússia e a
outros países: soberania tecnológica
é um imperativo. A China entendeu
isso muito antes da declaração de
guerra de Trump, o que aumentou
ainda mais seu senso de urgência.
Paradoxalmente, portanto, foram os
Estados Unidos que pressionaram a
China a colocar em prática uma das
muitas máximas de Zhengfei: “Sem
independência [tecnológica], não há
independência nacional”. Seria irôni-
co que a batalha dos Estados Unidos
contra a Huawei fizesse nascer uma
China muito mais avançada e autô-
noma no plano tecnológico, sem ne-
nhum fornecedor norte-americano
em suas cadeias de abastecimento.

*Evgeny Morozov é fundador e editor do
portal The Syllabus (the-syllabus.com). Au-
tor de Pour tout résoudre cliquez ici. L’aber-
ration du solutionnisme technologique [Pa-
ra resolver qualquer coisa, clique aqui. A
aberração do solucionismo tecnológico],
FYP Éditions, Limoges, 2014.
1 Citado em Yun Wen, The Huawei Model. The
Rise of China’s Technology Giant [O modelo
Huawei. A ascensão da gigante tecnológica
chinesa], University of Illinois Press, Cham-
paign, Illinois, publicação prevista para no-
vembro de 2020. As citações de executivos
da Huawei foram retiradas dessa obra.
2 Ler Philipp S. Golub, “Entre les États-Unis et
la Chine, une guerre moins commerciale que
géopolitique” [Estados Unidos × China: uma
guerra menos comercial do que geopolítica],
Le Monde Diplomatique, out. 2019.
3 Cf. Linda Weiss, America Inc.? Innovation and
Enterprise in the National Security State [Ameri-
ca Inc.? Inovação e empresa na segurança na-
cional], Cornell University Press, Ithaca, 2014.
4 Yun Wen, op. cit.
5 Dieter Ernst, “China’s Standard-Essential Pa-
tents Challenge: From Latecomer to (Almost)
Equal Player? ” [A mudança das patentes es-
senciais da China: de retardatária a competi-
dora (quase) de igual para igual?], Center for
International Governance Innovation, jul.
2017, Waterloo (Canadá). Disponível em:
http://www.cigionline.org.
6 Citado em Gregory Shaffer e Henry Gao, “A
new Chinese economic order? ” [Uma nova
ordem econômica chinesa?], Journal of Inter-
national Economic Law, Oxford, no prelo.
7 John Seaman, China and the New Geopolitics
of Technical Standardization [China e a nova
geopolítica dos padrões técnicos], IFRI, Pa-
ris, jan. 2020.
8 “Japan grows wary of China’s smart-city global
standards” [Japão se preocupa com os pa-
drões globais para cidades inteligentes da
China], Nikkei Asian Review, 11 ago. 2020.
9 Cf. Paul Triolo e Kevin Allison, “The Geopoliti-
cs of Semiconductors” [A geopolítica dos se-
micondutores], Eurasia Group, Nova York,
set. 2020; e Dieter Ernst, “Competing in Arti-
ficial Intelligence Chips: China’s Challenge
amid Technology War” [A corrida dos chips
de inteligência artificial: o desafio chinês na
guerra tecnológica], Center for International
Governance Innovation, mar. 2020, Waterloo
(Canadá). Disponível em: http://www.cigionline.org.

cupado.^8 E, por meio de seu ambicio-
so programa China Standards 2035,
lançado com grande pompa em 2020,
o país pretende melhorar a coopera-
ção entre empresas de tecnologia e
agências governamentais a fim de es-
timular o desenvolvimento de pa-
drões internacionais favoráveis aos
seus interesses.
E agora, o que farão os Estados
Unidos? Alguns observadores estabe-
lecem um paralelo entre a atual cam-
panha antichinesa e os anos 1980,
quando Washington tentava domar
os gigantes industriais japoneses. Em
1986, muitos membros do governo
Reagan e da indústria pensaram que
seriam estrangulados quando a Fujit-
su anunciou sua intenção de adquirir
a Fairchild Computing, lendária fa-
bricante norte-americana de semi-
condutores. Um executivo do setor
resumiu o sentimento geral: “Esta-
mos em guerra com o Japão – não é
uma batalha com armas e balas, mas
uma guerra econômica na qual a mu-
nição é a tecnologia, a produtividade
e a qualidade.” (Los Angeles Times, 30
nov. 1987). Alguns anos antes, as san-
ções comerciais incentivadas pela
Casa Branca conseguiram impedir a
Toshiba, outro mastodonte japonês,
de vender seus computadores no
mercado norte-americano.
“Estamos em guerra”: o lema não
mudou. A disputa comercial entre Es-
tados Unidos e Japão teve um desfe-
cho pacífico; muitos na China quise-
ram acreditar que com eles seria a
mesma coisa e que um acordo dura-
douro acabaria surgindo após algu-
mas concessões. Mas esse resultado
parece cada vez mais improvável. A
esse respeito, a administração Trump
está dividida em três campos. O pri-
meiro é o do próprio presidente. Tudo
sugere que seus ataques à Huawei e
similares são parte de uma estratégia
maior para garantir vantagem co-
mercial sobre a China. Na verdade, se
o objetivo fosse realmente impedir a
hegemonia da China sobre o 5G, a es-
tatal ZTE seria um saco de pancadas
muito melhor do que a Huawei – mas
ela não sofreu mais danos do que
uma multa de US$ 1 bilhão. Para
Trump, a Huawei é uma moeda de
troca nas negociações comerciais – e
um slogan de campanha.
O segundo campo é o dos falcões,
liderado por Peter Navarro, conse-
lheiro do presidente para o Comércio,
e Robert Lighthizer, representante do
Comércio dos Estados Unidos. A seus
olhos, conter a ascensão da China é
um imperativo vital, e eles não hesi-
tariam em atacar a Huawei com ain-
da mais força. Eles estão por trás de
todas as propostas que buscam am-
pliar o leque das empresas chinesas
afetadas pelas sanções. Por fim, há o
terceiro campo, o do complexo mili-


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