Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 159 (2020-10)

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OUTUBRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 9


nar, monitorar”, como se o espaço de
debate e engajamento cívico pudes-
se, ou devesse, ser coordenado pelos
governos. A reação forte desta socie-
dade e o apoio de parlamentares per-
mitiram a alteração da lei naquele
momento, mas não impediram que
se nomeassem agentes e oficiais de
governo inadequados para a função e
desrespeitosos com o diálogo com as
organizações.


ATAQUES SISTEMÁTICOS
Assiste-se, desde então, a um ataque
semanal às liberdades de opinião e
expressão cívicas. E este não é um
ataque menor, ou individual, como
às vezes se pensa ao ver um ou uma
jornalista sofrer ameaças e persegui-
ções. As liberdades de falar e organi-
zar-se não são secundárias – seja
porque são necessárias para a con-
quista ou defesa de outros direitos
humanos, seja porque sua restrição é
justamente um dos principais meca-
nismos de sufocamento democráti-
co. Muitas vezes se toma a liberdade
de expressão e associação como um
direito clássico, sem compreender
que a agenda de expressão vai além
da perspectiva liberal de um direito
individual. Hoje, no Brasil, ela se ma-
terializa como uma defesa de plurali-
dade de vozes e de garantias a grupos
discriminados que sofrem violações
sistemáticas e que são justamente os
que mais se levantam contra injusti-
ças e para defender direitos huma-
nos e ambientais.
Os ataques a ONGs, movimentos
sociais, povos tradicionais, impren-
sa, artistas e escolas são parte da res-
trição à liberdade de expressão no
Brasil que está em curso. Exemplos
disso foram o processo de intimida-
ção e criminalização contra a orga-
nização Saúde e Alegria e as prisões
de quatro integrantes da Brigada de
Incêndios de Alter do Chão, que
demonstram a tentativa de impedir
que as organizações da sociedade
civil participem livremente de
assuntos de evidente interesse públi-
co. De acordo com o documento
enviado para ONU e a Comissão
Interamericana de Direitos Huma-
nos por organizações brasileiras,
“desde as eleições presidenciais de
2018, as organizações da sociedade
civil brasileira vêm sofrendo siste-
máticos ataques, em um processo de
desmoralização e criminalização
que coloca em risco os direitos fun-
damentais de associação, de liberda-
de de expressão e de presunção de
inocência”.
Esse caso é emblemático de uma
combinação entre o ataque à liberda-
de de construir grupos e coletivos pa-
ra o ativismo ambiental com o des-
monte do sistema de informações
ambientais, já existente no Brasil, e a


propagação de notícias falsas por au-
toridades públicas, quando estas ten-
tam imputar a organizações da socie-
dade civil responsabilidade por
violações que elas buscam combater


  • como as queimadas. Parece uma
    fórmula óbvia: desmonta as informa-
    ções públicas, destrói o laço social e
    vende uma f loresta. Passa a boiada.
    Portanto, a diminuição da transpa-
    rência pública se combina com a des-
    truição de espaços de participação
    social e da produção e divulgação de
    dados e evidências que embasem po-
    líticas públicas.
    As queimadas na Amazônia e o
    ataque aos direitos dos povos indíge-
    nas e populações tradicionais são ex-
    pressões desse processo de erosão do
    ambiente público e, neste ano de Co-
    vid-19, o impacto da ausência de in-
    formação e de debate cívico amplo
    mostra seu efeito perverso e letal.
    Com 140 mil pessoas mortas como
    consequência do coronavírus, o pre-
    sidente Bolsonaro e seus apoiadores
    fazem uso dessa combinação perver-
    sa de desmonte de políticas públicas
    e de sistemas de transparência, com
    ataques às organizações para provo-
    car insegurança e recuo.


LIBERDADE DE IMPRENSA
Desde que foram confirmados os pri-
meiros casos de Covid-19 no Brasil, ao
menos 82 ataques a jornalistas e co-
municadores que realizavam cober-
turas relacionadas à pandemia e às
recomendações de prevenção da Or-
ganização Mundial da Saúde foram
registrados. Os dados mostram ainda
que 72% desses ataques foram reali-
zados diretamente por membros do
governo federal, pelo presidente da
República e por políticos associados,
revelando um cenário em que o des-
crédito da informação e do trabalho
da imprensa e as agressões contra jor-
nalistas são abertamente incentiva-
dos por membros do atual mandato.
Quase 10% dos ataques ocorreram
durante coberturas em hospitais e co-
mércios que permaneceram abertos,
contrariando decretos municipais e
estaduais, e políticas de prevenção
contra o vírus no período. As cobertu-
ras nesses casos foram interrompidas,
por vezes contando com agressões fí-
sicas e verbais, colocando em risco a
segurança dos jornalistas ali presen-
tes e prejudicando o direito da popu-
lação à informação – ainda mais ne-
cessário no contexto de uma grave
pandemia. São informações que po-
deriam orientar decisões individuais
e coletivas de prevenção à Covid-19.
Além desses ataques específicos,
449 violações contra jornalistas e co-
municadores foram cometidas pela
expressão, opinião e associação do
presidente da República, seus minis-
tros, familiares que exercem manda-

tos e políticos relacionados, entre ja-
neiro de 2019 e setembro de 2020.
Esses ataques reiterados geram um
ambiente de deterioração do traba-
lho da imprensa – de forma mais evi-
dente por meio de insultos, ameaças
e intimidações, ataques verbais, vir-
tuais e impedimento de cobertura
em determinadas situações –, mas
também, de maneira indireta, dete-
rioração da liberdade de imprensa e
mobilização da máquina pública pa-
ra promover – e não coibir – a desin-
formação. Em 42% dos casos (189) se
fez uso de um discurso estigmatizan-
te, no qual comunicadores e veículos
de mídia foram acusados de manipu-
lar o conteúdo jornalístico produzido
para tentar desestabilizar o governo
ou o país ou deteriorar a imagem do
atual mandato, produzindo notícias
falsas. Essa acusação é feita sem ne-
nhuma evidência que a prove.
Além do discurso estigmatizante,
houve a deslegitimação do trabalho
da imprensa em 38% dos casos (170),
em que se verificou uma associação
do trabalho jornalístico a termos pe-
jorativos, colocando em xeque o pa-
pel e a importância da imprensa. O
principal efeito dessa violação foi o
crescente descrédito da população
nos meios de comunicação e infor-
mação, que seguem padrões profis-
sionais e são passíveis de checagem.
Esse descrédito, entretanto, se desdo-
bra em diversos outros efeitos, am-
pliando a desinformação da popula-
ção. O discurso estigmatizante e a
deslegitimação do trabalho da im-
prensa acentuam o contexto de de-
sinformação crescente, uma vez que
as informações trazidas ao público
pela imprensa acabam associadas a
uma estratégia política. Além disso,
esse discurso contribui para o au-
mento da hostilidade social ao traba-
lho de jornalistas e comunicadores,
criando um ambiente que propicia a
ocorrência de violações mais graves,
como episódios recentes de agressões
físicas e verbais, ataques virtuais em
massa e interrupção de cobertura –
mesmo em situações extremas, como
a emergência de saúde pública.
Esses são, muitas vezes, casos
emblemáticos, mas com efeitos pro-
fundos na sociedade brasileira, já
marcada por um forte padrão de
desigualdades e discriminações. Do
ponto de vista simbólico, essa retóri-
ca opera para tentar retirar legitimi-
dade de vozes plurais – de novos cole-
tivos de comunicação falando de
racismo na vida do povo brasileiro,
novas blogueiras, negras, feministas,
de espaços cívicos de projeção de
experiências. O ataque à comunica-
dora Bianca Santana, integrante da
Coalizão Negra por Direitos, em pro-
nunciamento público do próprio pre-
sidente, repete a fórmula: acusada de

produzir notícias falsas, Bianca entra
na justiça e o porta-voz se retrata.
Mas aí a máquina de produzir ata-
ques racistas e misóginos já começou
a funcionar. Além de acionar o poder
judicial nacional, a jornalista apre-
senta seu depoimento na reunião do
Conselho de Direitos Humanos da
ONU, em Genebra.

AGENDA DE DIREITOS
As violações às liberdades de expres-
são, opinião e associação são agrava-
das em relação aos direitos das po-
pulações indígenas, negra e
quilombola e das mulheres – em que
as ações do governo federal incluem
não só um apagão de dados e infor-
mações epidemiológicas, como tam-
bém a não execução de orçamento e
de políticas públicas que poderiam
assegurar direitos no cenário de
emergência. Incluem ainda ataques
diretos e violações.
Há a perda de eficácia de políticas
públicas que agrava as crises, e a po-
pulação vai paulatinamente perden-
do a capacidade de fiscalizar a ação
do Estado, incluindo sérios casos de
corrupção. Com estímulo à desinfor-
mação e à polarização, cresce a par-
cela da sociedade que é conivente
com violações de direitos e retroce-
demos em relação ao enfrentamento
de desigualdades e discriminações
estruturais, em especial o racismo e
as violências de gênero.
Mais do que defender-se, a socie-
dade civil brasileira se coloca na li-
nha de frente da defesa das liberda-
des e, ao fazer isso, aponta para uma
agenda de debates sobre a intersec-
ção entre direitos que possam garan-
tir condições de existência digna com
pilares de reconstrução do tecido so-
cial, que está sendo corroído por
mentiras, fraudes, captura do espaço
público e desmonte de saber.
O Estado não é um governo; o
Estado brasileiro não é este governo
e, de qualquer forma, para nós, brasi-
leiros/as, esta nação é a que temos
por enquanto. Repensar nossas
estratégias de defesa do tecido social,
reativar nossas redes de colabora-
ção, trabalhar em conjunto, em
comunidades, estar juntos e juntas
parece ser, neste momento, nossa
maior potência. Temos muito a fazer
para garantir que esta sociedade
civil, que escreveu a Declaração Uni-
versal dos Direitos Humanos, siga
viva e forte para defender a sobrevi-
vência do planeta e de nosso dia
seguinte. Estamos aprendendo algo
com este ano, e talvez a grande lição
seja ver que há horizonte.

*Denise Dourado Dora é diretora execu-
tiva da Artigo 19 – organização internacio-
nal de defesa da liberdade de expressão e
informação.

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