Revista de Vinhos - Edição 371 (2020-10)

(Antfer) #1

@revistadevinhos outubro 2020 · 370 ⁄ Revista de Vinhos · 101


REPORTAGEM

texto Marc Barros / fotos D.R.

No início de dezembro de 1815, na sequência
da Batalha dos Três Imperadores, Napoleão
Bonaparte foi confirmado como um grande
estratega militar e soberano quase absoluto
da Europa, fundador do I Império francês.
Em Austerlitz, na Morávia do Sul (Slavkov
u Brna), a cerca de 10 km a sudeste de Brno,
na altura região que integrava o Império
Austríaco, a chamada Terceira Coligação, for-
mada por Inglaterra, Áustria e Rússia, com a
neutralidade da Prússia, enfrenta as forças
francesas (que curiosamente haviam sido der-
rotadas cerca de dois meses antes por Nelson na batalha marítima de
Trafalgar).
A intenção inglesa era impedir por todos os meios a invasão da ilha
britânica, receio reforçado depois de Napoleão coroar-se rei de Itália. A
20 de novembro de 1805, Bonaparte derrota os austríacos na Baviera
e marcha sobre Viena, que viria a ocupar a 13 de novembro. E segue
ao encontro do exército austro-russo em Austerlitz. Aqui, Napoleão
enfrentaria o czar Alexandre I da Rússia e o imperador Francisco II da
Áustria (que na realidade não marcou presença, mas contribuiu para
que a batalha assim ficasse conhecida). A 2 de dezembro, o exército
às suas ordens simulou uma tática de retirada e ocupou o estraté-
gico planalto de Pratzen, movimentações ocultadas por um espesso
nevoeiro que se fazia sentir, seguindo-se um ataque massivo francês
que, em última instância, resultou numa vitória retumbante.
Como consequência, a batalha custou a perda da coroa do Sacro
Império Romano-Germânico a Francisco I já que, pela paz de
Bratislava, a Áustria viu-lhe retirados os territórios do Tirol, Voralberg,
Veneza, Ístria e Dalmácia e Napoleão formou a Confederação de
Estados Alemães do Reno, sob o seu protetorado, destinada a fazer
tampão face à Prússia.
No período em que permaneceu na Morávia, Napoleão insta-
lou-se no Castelo de Mikulov, hoje uma atração turística da região,
e podemos certamente especular que tenha provado os vinhos pro-
duzidos localmente. Isto porque a Morávia do Sul é o maior e mais
antigo centro produtor de vinhos do país.
Com um passado que remonta à ocupação romana, quando as
legiões ocuparam as encostas de Pálava e plantaram as primeiras
vinhas, a viticultura é hoje uma atividade dinâmica na região, esti-
mulada em grande parte pelo (devido) aproveitamento dos fundos
comunitários que se seguiram à adesão da República Checa à União
Europeia, em 2004. Isso é visível na paisagem vitícola, com a dissemi-
nação de grandes áreas de vinhas novas, e na construção de adegas
contemporâneas, de traço moderno. Funcionais, sóbrias e direcio-
nadas para a melhoria contínua dos vinhos.
Grosso modo, a República Checa possui duas grandes regiões pro-
dutoras: a norte, junto à fronteira com a Alemanha, surge a Boémia;


a sul, encostada à Áustria, a Morávia do Sul.
Esta última divide-se em quatro sub-regiões:
Slovácko, Velké Pavlovice, Mikulov e Znojmo.
A recente reclassificação deu-se após a entrada
do país na UE, simplificando e reduzindo o
número de 10 sub-regiões que compunham
a Morávia. Inclui 17.421 hectares de vinhas, o
que representa 96% da área de vinha do país,
grande parte junto à fronteira com a Áustria
e o seu Weinviertel, onde predomina a varie-
dade Gruner Veltliner.

Um toque de Botrytis

O nevoeiro que ganhou a batalha a Napoleão diz-nos algo sobre
as características da região. Localizada em torno do paralelo 49 N e
contígua às zonas vitivinícolas a sul da Alemanha e norte da Áustria,
mas de influência continental, a Morávia conta com uma tempera-
tura média anual de 9,42°C, precipitação média de 510 mm e 2.244
horas de sol. O ciclo vegetativo é mais curto que na Europa Ocidental
mas, na maioria dos anos, destaca-se a maior intensidade térmica dos
meses de verão, o que permite o cultivo de castas de maturação tardia.
É, aliás, comum, encontrar nos vinhos aromas terrosos e de mofo,
mais associados à Botrytis Cinerea.
No que diz respeito à classificação dos vinhos, os checos adotaram
um sistema decalcado do alemão, que avalia a maturação da uva
durante a vindima e, consequentemente, o teor de açúcar no mosto,
cujas denominações são atribuídas segundo o teor de açúcar residual.
Podem ir desde o suché (seco, até 9 gr./lt!); polosuché (meio-seco);
polosladké (meio-doce); ao sladké (doce).
Em geral, trata-se de vinhos bastante leves, com alguma austeri-
dade, boa acidez (nem sempre capaz de equilibrar o teor de açúcar)
e relativamente baixo teor alcoólico. Os vinhos brancos são protago-
nistas, mas alguns tintos podem ter boa fruta e equilíbrio. Os vinhos
pozdní sběr (colheita tardia) são recomendáveis, bem como alguns
sekt (espumantes).
E, como em quase tudo o que se refira ao país, a nomenclatura das
castas pode ser um problema. Não só pela dificuldade em apreender
as designações, mas também pela diversidade de castas, algumas das
quais resultam de cruzamentos realizados durante a época comunista.
Desde logo a variedade Pálava, cruzamento de Muller-Thurgau com
Traminer e muito utilizada em Mikulov, a sub-região que visitámos.

A ronda de Mikulov

Por ocasião da última edição do Concurso Mundial de Bruxelas,
que decorreu em Brno, foi possível visitar diversos produtores na
sub-região de Mikulov, que operam em diversas dimensões, mas têm

Com um passado


que remonta à ocupação


romana, a viticultura


é hoje uma atividade


dinâmica, estimulada em


grande parte pelo (devido)


aproveitamento dos


fundos comunitários que


se seguiram à adesão da


República Checa à União


Europeia, em 2004.

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