Revista de Vinhos - Edição 371 (2020-10)

(Antfer) #1
PRODUTO

texto Fátima Iken / fotos Ricardo Garrido

A


bre-se o papel vegetal decorado
com vaquinhas azuis a pastar em
prados verdejantes, ao lado da
emblemática hélice de moinho
azul e, lentamente, passa-se a
faca pela superfície untuosa. Uma onda de
manteiga desenha-se sob o nosso olhar con-
cupiscente. Onde está a fatia de pão fofo e
acabado de fazer para barrar com manteiga, a
desfazer-se na boca, salina e cremosa? Pronto,
estamos felizes.
Não há pequeno-almoço digno de registo sem
manteiga, portanto. Por que deixamos de a
usar? Para não engordar? Porque as tendên-
cias nos bombardeiam com horrores de coles-
terol e dietas da moda? Acabamos por recorrer
a produtos “light” pejados de bugigangas muito
piores, mas enfim... Quando a manteiga é pura
nata de leite batido em cadência, sem conser-
vantes ou corantes, de vacas que vivem perto
do mar, só pode haver promessas de saúde e
sabor.
E é assim mesmo na Fábrica de Laticínios das
Marinhas, em Esposende, com o Atlântico
aqui tão perto. A paisagem de prados verdes
debruados pelo Cávado, a beleza natural de
Fão, Esposende ou Ofir acrescem de tipicidade
a estes produtos lácteos, apesar de ser cada
vez mais raro ver vacas a pastar no continente,
infelizmente. Tudo é feito à mão aqui – naquela
que foi a primeira fábrica de laticínios certifi-
cada em Portugal, situada mesmo junto à EN
13, que liga Porto e Valença.
Mal entramos, um aroma acolhedor a leite e
nata envolve-nos. Pudera. Há bilhas com flocos
de natas que parecem neve e tanques onde
repousam nuvens lácteas, numa espécie de
espelho branco cremoso.
Aqui faz-se a nata, não se compra. A manteiga
nasce a partir da nata que se retira do leite
para o queijo magro, outra das estrelas das
Marinhas. Há várias gerações que a tradição
se cumpre num mesmo ritual: bater a uma tem-
peratura certa e a um ritmo a compasso das
batidas do coração, de forma a transformar-se


em nata. Primeiro, durante 20 minutos, para
obter consistência. Depois, num segundo
momento, é batida mais uma hora, sendo o
líquido remanescente o chamado leitelho ou
soro de manteiga. A manteiga é ainda lavada e
homogeneizada, verificando-se a percentagem
de humidade “que não pode ser mais de 16%”.
Umas pedrinhas de sal (cerca de 1% do volume
total) completam a magia.
Esta manteiga das Marinhas normalmente
esgota. Está-se mesmo a ver porquê. Era o caso
de hoje, pois quem quiser também pode com-
prar diretamente na loja da fábrica. Não admira
que a Wallpaper a tenha eleito como uma das
13 melhores do mundo. “Depois do artigo da
Wallpaper foi o ‘boom’. Esgota quase sempre”,
afirma Bárbara Castilho, hoje um elemento
da terceira geração deste projeto artesanal
e também responsável pela área de comuni-
cação.
Apesar da dinâmica e algumas inovações na
criação de produtos, o respeito pela memória
e pelos procedimentos artesanais continua a
fazer parte da filosofia da casa, que resiste a
modas e mudanças.
As vacas são oriundas da zona, entre Laúndos,
Vila do Conde e Póvoa de Varzim e o leite é a
principal matéria-prima. Diariamente, entram
aqui cerca de 6.000 a 8.000 litros de leite de
vaca, o que se traduz em cerca de 600 litros
de natas, como é o caso de hoje, por exemplo.
Após análise, a nata retirada é colocada em
bilhas de metal de 50 litros e arrefecida numa
câmara frigorífica durante várias horas, de
modo a acidificar. 
Depois de batida durante duas horas, pode ser
adicionado sal ou não e a manteiga é manual-
mente embalada em papel vegetal, com vários
tamanhos. Se a manteiga com sal deve ser con-
sumida em dois meses, a sem sal tem apenas
um mês de validade. Estamos agora na sala
onde a manteiga é embalada à mão por várias
mulheres e estranhamos a cor branca. “Esta
manteiga não tem corantes, por isso estranha
não ser amarela”, alerta Sílvia, engenheira

alimentar. Apenas com o tempo muda de cor,
se fora do frigorífico, mas as matizes são sempre
pálidas e esbranquiçadas, pois é nata pura. A
fábrica nasceu em 1954 na sequência da aqui-
sição da Lacticínios de Esposende, Lda. e no
início estava apenas certificada para a pro-
dução de manteiga, numa altura em que os lati-
cínios davam os primeiros passos em Portugal.

O primeiro queijo magro português

Mas esta manteiga de luxo, nomeada em 2006
como uma das melhores do mundo, só existe
por causa do motor inicial da empresa, criado
por Reinaldo Castilho: um queijo magro que
acabou por ser o primeiro em Portugal. No prin-
cípio, a manteiga acabava por representar um
subproduto. Hoje, com a fama alcançada, tem
já, igualmente, posição de estrela, tal como o
queijo.
“Na altura, o queijo mais comum era o flamengo,
de bola vermelha, mas o meu avô teve a ideia
de criar um queijo completamente diferente

Há várias gerações que a Há várias gerações que a


tradição se cumpre num tradição se cumpre num


mesmo ritual: bater a mesmo ritual: bater a


uma temperatura certa uma temperatura certa


e a um ritmo a compasso e a um ritmo a compasso


das batidas do coração, das batidas do coração,


de forma a transformar-de forma a transformar-


se em nata. Primeiro, se em nata. Primeiro,


durante 20 minutos, para durante 20 minutos, para


obter consistência. Depois, obter consistência. Depois,


num segundo momento, num segundo momento,


é batida mais uma hora. é batida mais uma hora.


Umas pedrinhas de sal Umas pedrinhas de sal


completam a magia.completam a magia.


Manteiga. Só a palavra já nos põe a derreter por dentro. Aquela suavidade cremosa e
dourada a deslizar sobre uma fatia de pão, a sapidez salgada de uma onda láctea onde nos
espraiamos como quem mergulha num simples prazer. A manteiga das Marinhas é especial,
porque 100% artesanal. Há décadas que nos doa a natureza pura por mãos de mestre.
E, segundo a Wallpaper, é uma das 13 melhores manteigas do mundo.

@revistadevinhos outubro 2020 · 370 ⁄ Revista de Vinhos · 107

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