Revista de Vinhos - Edição 371 (2020-10)

(Antfer) #1

Elaborada desde 1954 por métodos artesanais, reflete um outro ter-
roir e maneiras diferentes das gerações de trabalho, resultando numa
coloração palha, textura fundente de grande qualidade e um sabor
extrememante requintado, adocicado e persistente. Entre Açores e
Marinhas? É como se comparássemos a explosão salgada e fumada de
um Verdelho dos Açores com a elegância e persistência da fruta de um
Alvarinho de Melgaço - não há melhores, apenas expressões emocio-
nantes de terroirs distintos.


Para harmonização, há gorduras e gorduras...


A manteiga é um produto perfeito para percebermos bem um dos
maiores equívocos em que muitos amadores e até alguns profissionais
da enogastronomia incorrem ao propor um casamento vinho-alimento.
Asserções generalistas do tipo “acidez corta gordura” são omnipre-
sentes e assaz perigosas. Como discutimos por vezes neste espaço da
revista, a acidez dos vinhos, ao lado da sapidez (e do gás carbónico dos
espumantes), são armas poderosas para, através de um forte estímulo
à salivação, ajudar à dispersão e diluição e consequente emulsionar das
gorduras sólidas. O efeito destas gorduras, como é o caso da manteiga
na temperatura de frigorífico, ou de um sashimi de atum toro ou ainda
um enchido de porco, é uma sensação tátil de emplastramento ou pas-
tosidade. Vinhos vibrantes e com muita frescura cortam essa sensação
de riqueza quase enjoativa, trazem vida ao casamento o qual, por sua
vez acalma o ímpeto demasiado festeiro.
Se a gordura é líquida, conforme discutido no nosso artigo sobre
o azeite, temos que procurar no vinho elementos que enxuguem ou
minimizem os efeitos dessa untuosidade na boca - no caso, taninos ou,
nos vinhos brancos, o álcool - e não um elemento como a acidez, que
induz a uma salivação intensa, ou seja, estaríamos a aumentar a quan-
tidade de líquidos na cavidade bucal, em vez de diminuí-la.
Como o ponto de fusão ou derretimento da manteiga é relativamente
baixo e adquire uma consistência “espalhável”
por volta dos 15ºC, torna-se uma gordura
líquida, dependendo da quantidade de sólidos
do leite e da composição de centenas de tipos
de ácidos gordos, ao redor dos 35ºC, ou seja,
próxima da temperatura interna da cavidade
bucal. Essa fração de mais de 80% de gordura
pura, composta principalmente de triglicerí-
deos, quando servida próxima da temperatura
do frigorífico, pedirá um perfil de vinho dotado
de acidez cortante, coadjuvada por outros ele-
mentos de dureza, como a sapidez mineral e
a espuma carbónica. Há harmonização mais
sedutora para um grande champagne rosé ou
espumante rosado da Bairrada de Baga, do que
uns canapés cobertos com discos de manteiga
fria e uma generosa colher de ovas de salmão?
O impacto ácido, de frescura e mineralidade
destes vinhos, reforçados pelo gás carbónico
natural, ajuda a emulsionar a gordura e tem
o seu ataque de dureza amortecido pela man-
teiga, ou seja, uma perfeita situação de “win-
-win”.
Quando aquecemos a manteiga para diversas
preparações culinárias, sabores maravilhosos e


uma textura rica e untuosa pedirão outro perfil de vinho. Devemos
contudo sempre evitar as frituras por imersão a temperaturas muito
altas, pois o “ponto de fumo” da manteiga é baixo: por volta dos 150ºC
já começa a degradar a sua estrutura de ácidos gordos livres, contra os
200ºC aproximadamente do azeite extra-virgem. No caso da manteiga
derretida, por exemplo em vieiras ao forno na concha, ou em molhos
de emulsão como no clássico francês para peixes à base de chalotas e
vinho branco, o chamado “beurre blanc”, não falamos já em gordura
sólida, mas em untuosidade. Nesta situação, o melhor é partirmos para
um rico Borgonha branco na faixa dos 13,5º de álcool, ou um belo
Encruzado do Dão já com 14º gr./lt., trabalhado judiciosamente em
barricas “à la bourguignonne”.

“Manteiga no vinho”

Para além dos mais de 80% de gordura e 15% de água e aproximada-
mente 3% de sal - quando é o caso -, a manteiga é ainda composta por
vitaminas liposolúveis A e D e uma centena de compostos diferentes
que contribuem para o sabor único, como lactonas, ácidos gordos,
diacetil, metil cetonas e dimetilsulfureto. Estes compostos ligam-se
molecularmente muito bem com vinhos de caráter amanteigado, prin-
cipalmente aqueles que sofreram fermentação malolática. Um dos
corolários desta conversão, pelas bactérias láticas, do ácido mais forte
e duro – málico -, num ácido mais redondo e dócil – lático -, é a for-
mação do componente diacetil, cujo aroma é aquele que mais asso-
ciamos à manteiga fresca (ou às pipocas de micro-ondas). O mesmo
diacetil é gerado no creme de leite através da ação da cultura lática,
sobretudo pelos Streptococcus cremoris, Leuconostoc citrovorum,
Leuconostoc dextranicum e Streptococcus diacetylactis a partir do
ácido cítrico e dos citratos.
Nos vinhos, a concentração do dimetil determina a sua intensidade.
O limiar de perceção num Chardonnay, por exemplo, é de apenas 0,2
mg./lt. e num Cabernet Sauvignon ou outros
tintos estruturados é de 2,8 mg./lt.. A con-
centração de dimetil depende por sua vez das
estirpes das bactérias envolvidas na malolática,
da velocidade e disponibilidade de oxigénio na
conversão, do pH do vinho, da sulfitagem e da
concentração de ácido cítrico.
De mãos dadas com a química podemos
tomar decisões mais informadas e promover
maridagens mais harmoniosas e duradouras.
Da próxima vez que sentir as típicas “buttery
notes” ou notas amanteigadas nos brancos que
passam por estágio em barricas de carvalho e
que normalmente realizam a conversão malo-
lática, traga o diacetil da manteiga para animar
a festa de casamento. E não se esqueça do por-
menor que faz toda a diferença: se o equilíbrio
do vinho pender para a acidez e baixo álcool,
normalmente resultante de climas mais frescos,
a manteiga também deve ser gelada e sólida; se
o equilíbrio pender para uma acidez menos
cortante e maior riqueza alcoólica, registo de
climas mais quentes, o melhor mesmo é que a
manteiga esteja derretida pelo vinho.

HARMONIZAÇÕES

No caso da manteiga


derretida, por exemplo em


vieiras ao forno na concha,


ou em molhos de emulsão


como no clássico francês para


peixes à base de chalotas e


vinho branco, o chamado


“beurre blanc”, falamos em


untuosidade. Nesta situação,


o melhor é partirmos para


um rico Borgonha branco na


faixa dos 13,5º de álcool, ou


um belo Encruzado do Dão


já com 14º gr./lt., trabalhado


judiciosamente em barricas “à


la bourguignonne”.


112 · Revista de Vinhos ⁄ 371 · outubro 2020 @revistadevinhos

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