Revista de Vinhos - Edição 371 (2020-10)

(Antfer) #1
Marlene Vieira dispensa grandes apresentações. É provavelmente a
chefe de cozinha com formação específica mais conhecida do país. Por
um lado, e em boa parte, essa notoriedade deve-se ao reconhecimento
do seu trabalho e percurso nas cozinhas, bem como rosto dos seus pró-
prios projetos: restaurantes, presenças televisivas, livros. Por outro lado,
a fama vem também da sua personalidade, da garra, da ambição e do
facto de dizer o que pensa sem pruridos - nomeadamente na sua con-
dição de mulher numa área ainda de excessivo domínio masculino -, o
que faz com que seja uma presença regular nos media.
Porém, por diversas razões, desde que saiu do Avenue, em 2012,
Marlene Vieira ainda não conseguiu regressar a um dos seus grandes
desejos, o de ter um restaurante gastronómico de cozinha de autor com
ambições a voos altos (leia-se: estrela Michelin). Esse desejo esteve
para acontecer em Março, tal como o espaço de que falo hoje. Porém, a
pandemia da Covid-19 adiou essa intenção para este mês de outubro,
ainda sem dia confirmado.
Portanto, à data em que escrevo este texto, ainda não há Marlene,
assim se vai chamar o lugar de fine dining da chefe nortenha radicada
em Lisboa, mas já há o mais descontraído e acessível Zunzum. Um e
outro, bem como uma extensa cozinha e espaço de produção parti-
lham uma generosa nave de um dos novos edifícios do novo Terminal
de Cruzeiros de Lisboa, junto a Santa Apolónia.
Num espaço moderno e amplo, de linhas retas e vidros em todos os
lados, os responsáveis pelo Zunzum assumiram a sobriedade e o mini-
malismo do lugar – que inclui ainda um bar, esplanada, e uma parte com
exposição e venda de produtos - mas intervieram o suficiente, na cor
vermelha, no mobiliário e no desenho gráfico, conseguindo assim trans-
mitir um ambiente mais caloroso e uma certa sensação de aconchego.
Na verdade, não deixa de parecer um pouco uma agradável cafetaria
de um museu, mas com personalidade.
O Zunzum apresenta-se como “gastrobar” e por isso a carta impressa
(num material rígido plastificado e higienizada discretamente a cada
utilização - como pude verificar) é composta por pequenos snacks, que
vêm normalmente aos pares, bem como pratos em doses comedidas
e preços em conformidade. Os produtos são portugueses e estilo de

cozinha, em geral, também (com uma outra exceção), mesclando tra-
dição e contemporaneidade de uma forma descontraída. Há pratos
mais óbvios, como o arroz de bivalves, o arroz de pato ou o polvo à laga-
reiro; outros mais criativos, como a filhós de Bulhão Pato, ou incomuns,
como o corndog.

Cozinha generosa e clara

A nossa visita aconteceu num sábado ao almoço de setembro.
Chegámos cedo, pelas 12h30, e embora o espaço da esplanada se mos-
trasse bastante agradável, o calor levou-nos a optar por uma mesa no
interior, com as mesas dispostas de forma a cumprir as normas da DGS.
O restaurante acabou por chegar à lotação permitida, o que não deixa
de ser agradável, e viu-se perfeitamente que tal é possível, em segu-
rança.
Começámos com uma salada do dia, fresca e com um agradável twist,
composta por folhas de alface e rúcula, figos frescos, fatias de espa-
darte curado, cebola frita, e aquilo me que pareceu ser um chutney
ligeiro de ananás, no fundo. Depois, veio a sapateira com abacate e ovas
de truta sobre uma telha crocante de pão. A ligação entre o crustáceo
e aquele fruto é muito usual em ementas de verão de lugares com um
toque autoral por esse mundo fora e Marlene interpreta-a bem, sendo
generosa na porção (de carne das pinças do bicho) e clara, com um
toque picante, no tempero. Muito bom!
Ideia maravilhosa e concretização feliz é a das filhós à Bulhão Pato.
Trata-se das filhós de forma, aquelas do Natal em que se banha a base
de um ferro em forma de flor (ou outra) e se leva a fritar resultando num
rendilhado crocante delicioso. Na sua versão salgada, Marlene Vieira
preenche os canais deixados pela forma com um creme que leva os
ingredientes do Bulhão Pato (azeite, alho, coentros), acrescentando
pontos de gel de limão, um pouco de pó algas e berbigões. Come-se em
uma ou duas bocadas e se cair na mão à primeira, lambe-se os dedos
com prazer. Portugal com um belo twist na palma da mão.
O “Corn dog”, uma invenção “pop” americana, é uma salsicha num
espeto que é frita depois de passada por um polme de farinha de milho.

@revistadevinhos outubro 2020 · 370 ⁄ Revista de Vinhos · 115

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