Revista de Vinhos - Edição 371 (2020-10)

(Antfer) #1
Acidez, sal e pimenta

Por estes tempos, quando
falamos de um vinho branco,
um descritor salta para a dianteira – acidez. Se um
produtor da Borgonha a tenta controlar e até baixar
ao mínimo indispensável, dado que os solos e o clima
aportam uma acidez natural elevada, regiões bem
mais quentes procuram-na como alguém sedento no
deserto.
Cada casta produz naturalmente vários ácidos,
sendo o ácido tartárico e o ácido málico os principais.
Os vinhos (brancos e tintos) de climas mais frios e de
solos de matriz calcária ou granítica têm tendência
para serem mais acídulos. A acidez poder ser medida
em pH e, no caso do vinho, habitualmente esse pH
varia entre 3 e 4. Regra geral, quanto mais baixo for o
pH maior será a acidez; no oposto, quanto mais alto
for o pH mais rápida será a evolução oxidativa de um
vinho.
Ao provarmos um vinho, se ficarmos a salivar bas-
tante é sinal que a acidez será elevada. Se verificarmos
que existem pequenas partículas que se assemelham
a cristais na base da garrafa ou na parte de baixo da
rolha de cortiça de um vinho que esteve no frigorí-
fico durante várias horas ou mesmo dias, sim, é muito
provável que a acidez desse vinho seja alta. Pelo con-
trário, um vinho com uma acidez menos pronunciada
será mais redondo e mais sedoso.
Dependendo do vinho que é pretendido elabo-
rar-se, na adega há alguns pozinhos e técnicas que
permitem suavizar ou incrementar a acidez. A fer-
mentação malotática, por exemplo, consiste em trans-
formar os ácidos málicos (mais ácidos e severos) em
láticos (mais suaves), fazendo com que o vinho fique
menos agressivo, por ação do dióxido de carbono. Já o
acrescento de ácido tartárico irá aumentar artificial-
mente o perfil de acidez natural de um vinho.
A acidez é das peças fundamentais que permite
aos vinhos evoluírem bem, mas não deve ser nem
endeusada nem destratada. Não queremos que um
vinho seja monótono ou monocórdico, tal como não
nos motivará um vinho apenas ácido e fresco, inócuo
em aromas e sabores. Equilíbrio é sempre a palavra-
-chave de um vinho.
É esse o alerta que me parece prioritário nesta fase,
em que os conhecimentos e técnicas de viticultura
são incomparavelmente mais sólidos e em que a eno-
logia finalmente domina a vinificação – sempre mais

apurada nos brancos – na adega.
Que um vinho tranquilo aço-
riano, madeirense, de Lisboa, da
Bairrada, de Setúbal, da Costa
Vicentina ou do Algarve possua notas salinas evi-
dentes de maresia, nada contra; que um vinho do
Douro, de Trás-os-Montes, da Beira, do Tejo ou do
interior alentejano também, sim, posso ter os meus
fundamentos para o estranhar. Que um vinho de
uma casta profundamente aromática passe a uma
matriz de absoluta neutralidade, sim, pode levar-me
a duvidar, mesmo que o argumento seja o da apanha
mais precoce da uva para evitar aromas mais expres-
sivos que surgem com a maturação.
Os vinhos brancos não podem perder o ADN
simplesmente em nome de uma tendência mundial
de consumo, muito menos pela busca de conceitos
tantas vezes baralhados como acidez, mineralidade,
salinidade. Nada contra a vinificação em cubas ovais
de cimento, de argila ou outro material, aplaudo o uso
ponderado de madeira, o resgate de barricas usadas
e a aposta em barricas de maior dimensão, que mar-
quem menos o vinho. Elogio a aposta em tonéis e em
foudres para vinificar brancos, mas parece-me que
merece ser questionada a neutralidade, por vezes até a
aniquilação do perfil natural de castas. Um Alvarinho
de Monção e Melgaço terá necessariamente de ser
diferente de um Alvarinho do Alentejo, um Arinto de
Bucelas terá que ser obrigatoriamente diferente de
um Arinto dos Açores, o Maria Gomes da Bairrada
terá um perfil distinto do Fernão Pires do Tejo.
Na perceção dessas diferenças estará a mais-valia
dos vinhos brancos portugueses no mundo e até
mesmo inter-regiões. O sentido de lugar, a geografia,
o microclima, o solo e o subsolo estão em cada pé de
vinha, não devem ser definidos pelo departamento
comercial ou pelo enólogo. Os grandes vinhos brancos
do mundo são os que reconhecidamente mostram
a origem, os que não a mascaram. No momento em
que se procura a expressão absoluta de um terroir, a
expressão de uma casta numa micro-parcela de vinha,
não faz lá muito sentido artificializar vinhos, trans-
formando-os naquilo que não o são. Se quiser ter
num copo um líquido incolor, praticamente inodoro,
estupidamente salgado e de final apimentado não
peço um vinho (encho um copo com água, junto-lhe
umas pedras de sal e uns pós de pimenta, “et voilà!”).
E, pessoalmente, sou dos que gostam de muita acidez
e picante, imaginem se não o fosse...

OPINIÃO

José João Santos, jornalista e crítico de vinhos

Os vinhos brancos


não podem perder o


ADN simplesmente em


nome de uma tendência


mundial de consumo,


muito menos pela busca


de conceitos tantas vezes


baralhados como acidez,


mineralidade, salinidade.


24 · Revista de Vinhos ⁄ 371 · outubro 2020 @revistadevinhos

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