Clipping Banco Central (2020-10-15)

(Antfer) #1

V - O honrado Dr. Tibiriçá


Banco Central do Brasil

Folha de S. Paulo/Nacional - Opinião
quinta-feira, 15 de outubro de 2020
Cenário Político-Econômico - Colunistas

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Autor: Maria Hermínia Tavares


Maria Hermínia Tavares


Pesquisadora do Cebrap e professora aposentada da
USP. Escreve às quintas


No final de 1973, passei uma semana no DOI-Codi do
2° Exército, em São Paulo. Nesse período, fui
interrogada pelo então major Carlos Alberto Brilhante
Ustra, a quem os subalternos chamavam de Doutor
Tibiriçá. Nos porões da repressão, nenhum agente
usava o nome verdadeiro - vários adotavam o mesmo
pseudônimo. O major "doutor" era uma pessoa vulgar,
meio fanfarrona, que demonstrava prazer em infundir
medo e gostava de alardear conhecimentos que não
tinha. Não sofri maus-tratos físicos, mas, entre os
poucos prisioneiros que vi, havia pelo menos um com
marcas visíveis de tortura.


Os especialistas chamam de justiça de transição
diferentes procedimentos adotados em países que se
democratizaram ou saíram de conflitos armados
internos para lidar com violações de direitos humanos


cometidos no passado recente. Incluem Comissões da
Verdade ou outras formas de tornar público o sofrimento
das vítimas; instrumentos judiciais para o
reconhecimento dos crimes praticados,
responsabilização ou punição de seus autores;
reparações simbólicas e monetárias; expurgo de
funcionários; anistia aos perpetradores.

A justiça de transição caminha lentamente, com recuos
e avanços, sobre alinha fina que separa o compromisso
com os direitos humanos do sempre movediço cálculo
político alimentado pelo receio da reação de quadros e
adeptos do regime anterior.

Ela não é exclusiva de um país. Nos últimos 30 anos, a
América Latina foi um laboratório de experiências hoje
bem documentadas por muitos estudos. Entre eles, o
livro organizado por E. Skaar, J.GarciaGodos e C.
Collins - "Transitional Justice in Latin America" (justiça
de transição na América Latina) - , que trata das
medidas adotadas em nove países da área, entre eles o
Brasil. Ali se vê que, ao contrário do ocorrido na
vizinhança, neste país raros foram os reclusos à Justiça.

Ustra, que chefiou o DOI-Codi entre 1970 e 1974, foi
objeto de duas das escassas ações judiciais
impetradas. Acabou condenado em ambas, numa delas
ainda sem sentença final. A Justiça reconheceu sua
responsabilidade pelo sequestro, tortura e morte de
opositores da ditadura. Em depoimento à Comissão da
Verdade, afirmou sem corar que, na pele do Dr. Tibiriçá,
"cumpria ordens de seus superiores no Exército".

Falecido em 2015, Ustra é considerado herói pelo ex-
capitão alçado à Presidência e pelo general seu vice,
para quem se tratava de uma "pessoa honrada". Os
louvores falam por si dos valores morais de ambos -
antagônicos aos que deveriam inspirar Forças Armadas
cuja missão é proteger o país e sua Constituição
democrática.

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