Visão - Portugal - Edição 1441 (2020-10-15)

(Antfer) #1
15 OUTUBRO 2020 VISÃO 25

OPINIÃO

POR JOSÉ EDUARDO MARTINS / Advogado e ex-deputado do PSD

Democracia


de papel


O


primeiro-ministro e o Presidente da
República decidiram inaugurar um
costume constitucional sem avisar,
passe a contradição. Anunciaram
inopinadamente, pela voz do dr. Costa,
não renovar mandatos de titulares de
órgãos de soberania. Não se percebeu
ainda muito bem quais, porque, lá está,
os costumes precisam de tempo mas,
sobretudo, porque as conveniências se
disfarçam mal como regras. Depois da incómoda
procuradora-geral da República Joana Marques
Vidal, foi agora o presidente do Tribunal de Contas,
Vítor Caldeira, que levou guia
de marcha.
Se costume havia, este era
exatamente o contrário.
Ao guarda do dinheiro de
todos, renovou-se sempre, mas
sempre, o mandato desde há
décadas. Mas o homem que
lá estava parece que nunca
tergiversou e passou este ano a
arranjar lenha para se queimar.
Quem se mete com o PS, já se
sabe, leva.
Quando anunciou, no meio
do frenesim dos ajustes diretos
da pandemia, que não valia
tudo e explicou, “vamos ver
quem adjudica a quem e se são
sempre as mesmas empresas
a contratar com determinadas
entidades”, traçou o destino
muito antes de o tribunal tentar
explicar que aligeirar a eito a
contratação pública – como quer o PS – favorece
a corrupção.
O primeiro-ministro despediu-o, por telefone, e
conseguiu pôr a presidente do Tribunal de Contas o
antigo diretor-geral que o inquérito crime das PPP
ilustra como prestimoso colaborador do governo
Sócrates, no tal visto de que as PPP precisavam
para nos esticar a conta que estamos a pagar.
No dia da posse do novo titular, o Presidente
da República fez um discurso absolutamente
desconcertante. Como se não legendasse o que nos
estava a ser servido, elogiava sem parar o homem
que não reconduziu, e não podia reconduzir, depois

de anuir pelo silêncio ao conveniente “princípio”
anunciado pelo primeiro-ministro. Parecia estar
a renomear o despedido, enquanto de facto dava
posse ao escolhido de Costa, que, de lado, calado,
parecia estar ao comando. Deprimente.
Nessa noite, Paulo Campos voltou à televisão.
A lei de Murphy, right?... Explicou que a ajuda
do novo presidente José Tavares ao aumento da
despesa das PPP foi “absolutamente legal” e, de
resto, “enquadrada por pareceres dos senhores
professores Sérvulo Correia e Marcelo Rebelo
de Sousa”. Perturbador.
Rui Rio pôs a cereja em cima do bolo. Segundo
as crónicas, perante duas
opções, chamado a opinar,
não lhe ocorreu hesitar
e/ou declinar. Desempatou
a favor do nomeado. Pecou
sem provar, portanto.
E assim temos a coisa
a que chamamos República
e a democracia que a ampara.
No dia a seguir, sem
que ninguém reparasse,
o Supremo Tribunal
Administrativo caucionou


  • até por via “das
    recomendações da OMS”

  • uma coisa a que chamou
    “Estado de Emergência
    Sanitária”. Para a irritação ser
    maior, no mesmo dia em que
    os tribunais de Madrid faziam
    respeitar uma coisa chamada
    Constituição, que não deu
    muito trabalho, por acaso.
    Talvez valha a pena parar e perceber que isto
    anda mesmo tudo ligado.
    Se aceitarmos que nos limitem as liberdades
    constitucionais por decreto regulamentar, também
    podemos ficar imunes a este triste espetáculo
    que nos é servido com a substituição de titulares
    incómodos nos órgãos de soberania. No fundo,
    abusam, porque sabem que podem. É triste e é
    nestas alturas, quando tudo parece uma casa de
    papel vulnerável ao primeiro sopro, que assusta
    ver a democracia, que parecia para sempre, morrer
    todos os dias um bocadinho pela mão da nossa
    apatia. [email protected]


Se aceitarmos que nos
limitem as liberdades
constitucionais por
decreto regulamentar,
também podemos
ficar imunes a este
triste espetáculo que
nos é servido com
a substituição de
titulares incómodos
nos órgãos
de soberania

POR JOSÉ EDUARDO MARTINS / Advogado e ex-deputado do PSD
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