Visão - Portugal - Edição 1441 (2020-10-15)

(Antfer) #1

36 VISÃO 15 OUTUBRO 2020


abraços e beijos, vale quase tudo,
incluindo aceitar lambidelas. A in-
tenção é a melhor, as consequências
nem tanto. “Os cães toleram abraços,
mas os indicadores comportamen-
tais têm-nos dito que não simpa-
tizam especialmente com o gesto.
Sem querer, estamos a invadir o seu
espaço e pode correr mal”, observa
Rita Silva, presidente da associação
Animal.
É importante saber ler os sinais,
como sublinha a bióloga Ana Cas-
tro, para não dar passos em falso:
“Se o animal começa a bocejar, a
ter as pupilas dilatadas, a lamber
os lábios, a colocar as orelhas para
trás, está a dizer-me que precisa do
seu espaço. Se está a avisar-me, do
ponto de vista dele, e eu continuo a
fazer o mesmo, em última instância
pode morder.”
O médico veterinário Gonçalo da

Graça Pereira, diretor do Centro para
o Conhecimento Animal, em Algés,
explica que não é nada descabido
que assim seja, uma vez que “na
sociedade canina os cães pressen-
tem o perigo quando outros cães se
aproximam”. É por isso natural que
fiquem alerta perante alguém que
se chega, sobretudo se estiver com a
cara ao nível da sua, como acontece
com as crianças, o que representa
um risco acrescido. “Não quer di-
zer que alguns não aceitem, mas
até um cão muito confiante começa
a desviar a cara quando não quer”,
faz saber o clínico. “Com os gatos é
igual, só que são mais subtis. E, de
repente, arranharam ou morderam.
‘Gatos falsos’, dizem as pessoas. Não,
não são.”
Os beijos e as lambidelas estão
igualmente desaconselhados, não só
por “questões de higiene”, mas tam-
bém por confundirem os animais,
adverte Gonçalo da Graça Pereira.
Sendo através desses contactos que
“procuram informações sensoriais”

nos seus pares, não as encontram
nos humanos porque “as glându-
las da boca são diferentes” entre as
espécies.
Já no caso das festas, é preciso
saber doseá-las e não só. “Cães e
gatos não gostam que lhes mexam
no alto da cabeça”, exemplifica Ilda
Gomes Rosa. Se não forem habitua-
dos desde cedo, os gatos dispensam
mesmo qualquer contacto físico (a
maioria detesta que lhes peguem ao
colo, por exemplo) e, se porventura
o desejarem, “preferem ser eles a
procurá-lo”, acrescenta a médica
do Hospital Escolar Veterinário da
Faculdade de Medicina Veterinária
da Universidade de Lisboa, onde
também leciona.
Uma boa forma de perceber se
os animais estão confortáveis com
as festas é interrompê-las por uns
segundos. Se o cão se aproxima,

mostra que quer mais; no caso do
gato, dar à cauda ou pôr as orelhas
de lado são indícios de saturação. “Se
continuarmos, levamo-lo à exaus-
tão e, quando já não aguenta mais,
dá uma sapatada e vai-se embora”,
ilustra Gonçalo da Graça Pereira.
Outro gesto muito comum, mas
imprudente, é dar a mão a cheirar
a um cão, avisa este especialista
em comportamento e bem-estar
animal. “Se ele estiver com medo, a
nossa mão é a do Eduardo Mãos de
Tesoura”, ameaçadora e potencial-
mente perigosa. “Se estiver carregada
de odores de outros animais, pode
gerar ainda mais repulsa no cão e ele
pode atacar.”
As mãos e os pés servem muitas
vezes para brincar com os gatos, uma
tentação que ganha força quando
eles se põem de barriga para cima,
num aparente convite ao toque.
Nada mais errado. “Quando roda,
um gato está a cumprimentar-nos,
como que a dizer ‘Olá, como estás?’.
Quebramos toda a confiança quando

invadimos esse espaço e lhe toca-
mos”, adianta o médico veterinário.
Por norma, um cão também não
clama por brincadeira quando se
vira de patas para o ar. Está antes a
pedir para nos afastarmos, que de
momento não está disposto a inte-
rações físicas.

EDUCAÇÃO À FORÇA
Os animais de companhia precisam
de ser ensinados. Quando os donos
não têm essa aptidão, devem procu-
rar um treinador. Se este princípio
básico não for aplicado, é mais do
que certo que sai asneira. Um dos
erros mais gritantes passa por en-
costar o focinho do animal às suas
necessidades fisiológicas, quando as
faz fora do sítio apropriado. “Não é
forma de os educar”, corta a direito
Nuno Alexandre, diretor clínico do
Hospital Veterinário da Universidade

de Évora. “Quando são cachorros,
devem ser levados muitas vezes à
rua e serem recompensados sempre
que fazem as necessidades no sítio
indicado.”
O chamado reforço positivo, que
também é válido para os gatos, é a
opção correta. A outra, além de ro-
çar a tortura, arrisca-se a tornar a
emenda pior do que o soneto. “Há
uns anos, conheci o caso de um cão
que, sempre que a dona chegava a
casa, começava a esfregar-se no xixi,
todo contente. Aprendeu? Não. Pen-
sava que era isso que a dona queria”,
relata Ilda Gomes Rosa.
Investigadora no Instituto de
Biologia Molecular e Celular, da
Universidade do Porto, a bióloga Ana
Castro é a autora principal de um es-
tudo que avaliou os níveis de stresse
em 92 cães de companhia treinados
com métodos aversivos (baseados
na agressividade, na dor e na inti-
midação), de reforço positivo (com
recompensas por comportamentos
corretos) e mistos (um meio-termo

‘‘SE O ANIMAL COMEÇA A BOCEJAR, A TER AS PUPILAS DILATADAS,


A LAMBER OS LÁBIOS, A COLOCAR AS ORELHAS PARA TRÁS, ESTÁ A


DIZER-ME QUE PRECISA DO SEU ESPAÇO. SE ESTÁ A AVISAR-ME, DO


PONTO DE VISTA DELE, E EU CONTINUO A FAZER O MESMO, EM ÚLTIMA


INSTÂNCIA PODE MORDER” ANA CASTRO, BIÓLOGA

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