Visão - Portugal - Edição 1441 (2020-10-15)

(Antfer) #1
15 OUTUBRO 2020 VISÃO 39

A inconsistência em decisões
como dar ou não dar comida à mesa
e permitir ou não permitir que dur-
mam nas nossas camas é outro fator
potencialmente desestabilizador dos
animais: se podem num dia, devem
poder em todos; se não podem, o
melhor é não abrir exceções para
não os baralhar.
Permanecerem fechados em casa
ou cingidos à rua da frente também
não é saudável. Na hora de os educar,
importa mostrar-lhes o mundo, de-
fende Sandra Duarte Cardoso, médica
veterinária que preside a associação
SOS Animal. “Seja cão ou gato, deve
andar de carro, ir ao jardim, andar de
ambulância, entrar no hospital, ouvir
os barulhos, sentir os cheiros e ver
uma diversidade imensa de pessoas,
não só as da nossa família ou amigos
mais próximos”, desfia a ativista, sem
se deter nas consequências quando

não lhes abrimos horizontes: “Por
egoísmo, pensamos que eles vivem
muito bem sozinhos e depois leva-
mo-los à rua e não socializam como
deviam com os outros da mesma
espécie. São frustrados, nervosos
e até agressivos porque não foram
habituados a esse convívio.”
Por uma razão ou por outra, o
certo é que estão a aumentar os ca-
sos de stresse clínico nos animais de
companhia, avança Jorge Cid. Mais
os cães do que os gatos, distingue
o bastonário dos veterinários, “to-
mam o feitio dos donos”, a ponto de
denunciarem, pelo nervosismo que
apresentam, ambientes conflituo-
sos. “Famílias felizes fazem animais
felizes, famílias complicadas fazem
animais stressados e com alterações
de comportamento.”

PARABÉNS A VOCÊ? MENOS
É fácil de interiorizar: tudo o que
contraria a essência do animal não
lhe traz qualquer benefício. Humani-
zá-los, uma tendência cada vez mais

vulgar, é condená-los àquilo que
não são, logo, um ímpeto a travar.
Da estética à replicação forçada dos
hábitos do dono, não faltam peque-
nas maldades a que sujeitamos os
nossos estimados bichos quando
os julgamos à nossa imagem. Ora
os olhamos como mais um filho da
prole ou o tal que nunca tivemos,
ora os encaramos como o amigo do
peito que tem de repetir as mesmas
experiências que apreciamos.
Vejamos: vesti-los com fatos de
treino completos (sim, acontece, qual
atleta de alta competição), tutus, bo-
tas, laços e chapéus – excessivo; tos-
quiá-los à máquina, pintar-lhes as
unhas e o pelo, aplicar-lhes ruidosos
guizos ao pescoço – idem; levá-los à
praia e pressioná-los a tomar banho


  • aspas, aspas; acompanharem-nos a
    jantar fora no restaurante – um tédio
    para a maioria deles, um desassosse-


go para nós, com forte probabilidade
de terminar mal.
“Os animais são uma responsa-
bilidade para a vida e temos o dever
de lhes providenciar o máximo bem-
-estar possível, mas não é a tratá-los
como pessoas. Eles não são nossos
filhos. Isso é criar uma expectativa à
qual eles não conseguem correspon-
der”, insurge-se Ilda Gomes Rosa,
desde criança habituada a conviver
com cães e gatos.
Para a médica veterinária, uma
das pioneiras em Portugal a interes-
sar-se pela área de comportamento
e bem-estar, é impensável aperal-
tar os seus animais, sabendo que
lhes “causaria desconforto”. Ainda
assim, admite que, no que toca aos
canídeos, acabariam por se habi-
tuar. “Neste aspeto considero o gato
mais inteligente. O cão é um boca-
do burro, no sentido em que tenta
agradar-nos a torto e a direito”, atira,
deixando no ar uma certa inquietude
perante o grau de submissão canina
aos caprichos dos donos.

entre os dois anteriores). Ao longo de
três anos, ela e a sua equipa filmaram
os animais durante os treinos, para
posterior identificação de sinais de
stresse, ao mesmo tempo que lhes
mediram o nível de cortisol, pre-
cisamente a hormona associada a
essa reação emocional negativa. Os
resultados, divulgados no final de
2019, indicaram que, “quanto mais
estímulos agressivos são utilizados
nos treinos, maior é o stresse sentido
pelos cães naquele instante”. Num
outro teste realizado para medir o
efeito no bem-estar a longo prazo,
as conclusões apontaram no mesmo
sentido, com a nuance de não ter
sido identificada qualquer sequela
nos animais submetidos ao método
de treino misto.
Acontece que muitos donos e
treinadores continuam a privilegiar
a violência física e o medo como


forma de dominarem os cães, con-
dena Ana Castro. “Inspiram-se em
programas de televisão que defen-
dem que todo o comportamento
desobediente resulta do facto de nós,
enquanto donos, não conseguirmos
estabelecer-nos como macho alfa.
Entendem que os cães nos veem
como membros da matilha e que os
problemas se resolvem mostrando-
-lhes quem é o líder, o que não tem
qualquer comprovação científica”,
alega a investigadora.
Gonçalo da Graça Pereira cha-
ma-lhe “mito dos anos 70, já com-
pletamente refutado”, mas que con-
tinua a ser propagado não apenas
na televisão mas também em livros
e na internet. “O cão não está em
disputa connosco e, portanto, es-
tamos a criar nele um desequilíbrio
emocional que acaba por deteriorar
e quebrar o vínculo”, sustenta, acres-
centando-lhe a agravante de “desen-
volver o medo e a ansiedade na outra
espécie, que depois vão resultar em
problemas de comportamento”.


‘‘SEJA CÃO OU GATO, DEVE ANDAR DE CARRO, IR AO JARDIM, ANDAR


DE AMBULÂNCIA, ENTRAR NO HOSPITAL, OUVIR OS BARULHOS, SENTIR


OS CHEIROS E VER UMA DIVERSIDADE IMENSA DE PESSOAS, NÃO SÓ


AS DA NOSSA FAMÍLIA OU AMIGOS MAIS PRÓXIMOS” SANDRA DUARTE


CARDOSO, VETERINÁRIA QUE PRESIDE A ASSOCIAÇÃO SOS ANIMAL

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