Visão - Portugal - Edição 1441 (2020-10-15)

(Antfer) #1

40 VISÃO 15 OUTUBRO 2020


E quanto a levar os seus dogues
alemães a jantar fora? “Se eu disses-
se a uma das minhas cadelas para
ficar debaixo da mesa, a mesa voava.”
Restaurante de pantanas, assunto
encerrado. Então e à praia? ”À hora
do calor, nunca. A primeira coisa que
um cão faz é um buraco para se enfiar
no fresco. Além de que a areia causa
muitas dermatites e, por vezes, pro-
blemas articulares. De tomar banho
também são poucos os que gostam.
Quando vejo pessoas a acharem que
o cão tem de entrar na água, lembro-
-me daquelas crianças aos berros à
beira-mar, cheias de medo. Mais uma
vez, o nosso egoísmo prevalece sobre
a vontade do animal.”
Nos tempos que correm, o ex-
cêntrico torna-se banal e a imagi-
nação faz a festa. De aniversário, por
exemplo. “Hoje em dia está muito
vulgarizado encomendar-se um bolo

de anos, e já os há com ingredientes
próprios para cães. Cantam-se os
parabéns e sopra-se uma vela”, des-
creve Jorge Cid, acérrimo crítico “do
folclore que alimenta o ego das pes-
soas e do qual o animal não precisa”.
É talvez esta a expressão máxima da
sua ascensão a “membro da família
que tem direito a tudo, como se fosse
um filho”, mas no fim de contas sig-
nifica, acima de tudo, “transportá-lo
para uma realidade muito artificial
que poderá causar-lhe stresse”.

ANTES FEIOS E SAUDÁVEIS
Uma coisa, certamente discutível,
é aprimorar raças sob o desígnio
de melhorar traços comportamen-
tais ou evitar doenças hereditárias.
Outra, garantidamente polémica, é
promover cruzamentos com o pro-
pósito de aperfeiçoar a beleza, ainda
mais de gosto duvidoso e com graves
prejuízos a nível de saúde.
“O exemplo mais flagrante são os
braquicéfalos, cães que não têm o
nariz que deviam ter e fazem o do-

bro do esforço para respirar. Estão
em sofrimento constante só porque
um dia nasceu um animal com essa
deformação e alguém achou giro
ter mais assim”, recrimina Sandra
Duarte Cardoso, diretora clínica
do Hospital Veterinário Solidário
SOS Animal. “Toda aquela atrofia
foi apurada geneticamente por mão
humana e só é corrigível através de
uma cirurgia terrível. Tenho cente-
nas na minha carteira profissional e
não conheço um que seja saudável.”
Chama-se síndrome respiratória
obstrutiva e afeta raças de focinho
curto como os buldogues ingleses
e franceses, os pug ou os boston
terrier. “Se a doença não for tratada,
os cães são intolerantes ao exercício,
propensos ao sobreaquecimento e a
uma diminuição da esperança média
de vida”, esclarece Nuno Alexandre,
que além de dirigir o Hospital Ve-

terinário da Universidade de Évora
dá aulas de Cirurgia, Imagiologia e
Medicina de Urgências de animais
de companhia, na mesma instituição
de ensino.
A má sina das raças braquicéfalas
não fica por aqui. “Devido a órbitas
oculares pouco profundas”, prosse-
gue o médico veterinário, são mais
suscetíveis a padecerem de “trauma
ocular, ulceração da córnea e deslo-
cação do globo ocular da órbita”, o
que pode levar a perda total da vista,
se não forem tratados a tempo.
Fruto do mesmo tipo de reprodu-
ção seletiva, motivada por caracte-
rísticas físicas específicas, os teckel,
os basset hound e outras raças com
o dorso muito comprido e as patas
curtas (as condrodistróficas) tendem
a desenvolver a doença do disco in-
tervertebral, associada a “lesões neu-
rológicas mais ou menos severas”. Já
os rottweilers, os golden retriever
e os são bernardos sofrem mais de
displasia da anca, degeneração das
articulações e tumores ósseos.

No caso dos gatos, “os mais mexi-
dos são os mais doentes”, segundo a
experiência clínica de Sandra Duarte
Cardoso. “Os sphynx, que não têm
pelo por causa de uma anomalia ge-
nética, são muito frágeis. As fêmeas
persas sofrem horrores para parir e
chegam aqui todas para cesariana.
E ainda acrescentaria os azuis, os
bosques da Noruega e os bengal
num top 5 dos mais vulneráveis”,
hierarquiza a líder da SOS Animal.

LEVEM-NOS A PASSEAR
Proporcionar uma alimentação equi-
librada, manter as vacinas em dia,
tratar da higiene dentária, ir ao ve-
terinário sempre que se justifica,
passear os cães e limpar o areão dos
gatos são alguns cuidados básicos
que nenhum dono que se preze
pode descurar. Num mundo perfeito,
claro. No nosso, “palavras, leva-as

o vento”, como ensina o provérbio
popular. E mais depressa elas voam
se começam a surgir problemas fi-
nanceiros – não é barato estimar um
animal de companhia.
“Há pessoas que pensam que basta
levá-los para casa, dar-lhes comida
e água, e já está. Tratam-nos como
se fossem bibelôs”, indigna-se Rita
Silva, da Animal, ao refletir sobre a
negligência de certos donos, que nem
se dão ao trabalho de levar os cães à
rua para fazerem as necessidades.
“Estou a lembrar-me dos chamados
‘casos varanda’, animais que vivem a
vida inteira resumidos a esse espaço
da casa. Os detentores vão de fim de
semana, vão de férias, e deixam ali os
animais, sozinhos.” Um atentado, ten-
do em conta que a rotina ideal deve
contemplar quatro saídas de 20 a 40
minutos por dia, de acordo com o
médico veterinário Nuno Alexandre.
Um erro ao qual nem sempre é
fácil resistir é a partilha da nossa co-
mida. “Tem cebola, alho, especiarias,
sal, e por isso está contraindicada”,

‘‘OS ANIMAIS SÃO UMA RESPONSABILIDADE PARA A VIDA E TEMOS O


DEVER DE LHES PROVIDENCIAR O MÁXIMO BEM-ESTAR POSSÍVEL, MAS


NÃO É A TRATÁ-LOS COMO PESSOAS. ELES NÃO SÃO NOSSOS FILHOS.


ISSO É CRIAR UMA EXPECTATIVA À QUAL ELES NÃO CONSEGUEM


CORRESPONDER” ILDA GOMES ROSA, MÉDICA VETERINÁRIA

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