Visão - Portugal - Edição 1441 (2020-10-15)

(Antfer) #1
15 OUTUBRO 2020 VISÃO 43

assinala Gonçalo da Graça Pereira,
do Centro para o Conhecimento
Animal. As dietas inadequadas são
causa de vários problemas de saúde
em cães e gatos, com a obesidade
e a diabetes à cabeça. Em menor
expressão, também aparecem gas-
troenterites (reação adversa a deter-
minado alimento), pancreatites (por
excesso de gordura) e obstruções
no tubo digestivo (provocadas por
ossos ingeridos), enumera Nuno
Alexandre, sem esquecer a doença
periodontal, ou seja, a inflamação
das gengivas por acumulação de
placa bacteriana. É o que dá não lavar
os dentes aos animais, seguramente
um dos cuidados mais ignorados
quando devia ser um hábito diário.
As pastas que se misturam na ração
constituem um paliativo que atrasa
a formação de tártaro, mas não dão
garantias a prazo.
Se fechar os olhos às necessidades

dentárias é um mal generalizado,
esticar a corda até se decidir con-
sultar um veterinário também reúne
uma legião de adeptos. Demasiados.
“Quando aqui chegam, os animais já
estão a sangrar por todo o lado ou
completamente apáticos”, agasta-se
Sandra Duarte Cardoso, assumindo
a frustração “quando já não dá para
fazer nada”.
Quantas vezes os donos não espe-
ram “uma ou duas semanas” até re-
correrem a tratamento profissional...
Tempo suficiente para procurarem
diagnósticos e mezinhas em “con-
sultórios” acessíveis através de cli-
ques, como alerta Ilda Gomes Rosa,
irónica q.b.: “Que eu saiba, nem o
dr. Google nem o dr. Facebook fre-
quentaram qualquer faculdade de
medicina veterinária.”

COM AMIGOS DESTES...
Na origem de múltiplos golpes in-
fligidos aos nossos companheiros

de quatro patas, a ignorância e a
negligência estão longe de atingir o
grau de crueldade da maldade pura
e dura. Quando se trata de violentar
fisicamente um animal, os humanos
são capazes das maiores atrocidades,
já tantas vezes testemunhadas por
quem anda no terreno a acudir a
sobreviventes improváveis.
Sandra Duarte Cardoso não es-
quece o milagre do cão resgatado
num caixote do lixo, no concelho de
Sintra. Quando a Polícia Municipal
chegou, alertada por vizinhos do
dono do animal, “o cão tinha o crâ-
nio aberto e mais dois cortes gigan-
tes”. Consequência de três machada-
das, alegadamente por estar a ladrar
durante a transmissão televisiva de
um jogo de futebol. Resistiu e ainda
hoje está vivo, com mais alguns anos
pela frente. “Tem um medo visceral
dos seres humanos em geral, sendo
mais reativo aos homens. Se rimos

ou falamos um pouco mais alto,
entra completamente em pânico.
Não suportava o toque, mas com o
tempo foi permitindo o de pessoas
conhecidas. Ficou sem um olho e
tem a chamada dor fantasma nas
zonas onde levou as machadadas.”
Está agora à guarda de uma “pessoa
ligada à causa animal, habituada a
lidar com este tipo de casos”, congra-
tula-se a presidente da SOS Animal.
O antigo dono? “Foi condenado a
alguns anos, com pena suspensa, e
pagou uma multazeca.”
Todos os motivos parecem válidos
para descarregar a ira nos animais
de casa. Uma cadela passou uma
semana a ser corroída por ácido,
depois de o dono lho ter despejado
em cima por ter feito as necessidades
no sítio errado. Como não parava de
ganir, os vizinhos denunciaram o
caso às autoridades, mas o homem
não queria entregá-la. “A desgraça
dele foi quando a cadela apareceu à

porta e a puxámos”, recorda Sandra
Duarte Cardoso.
Desde 2018, maltratar ou aban-
donar animais de companhia é crime
à luz da lei portuguesa. Segundo o
Relatório Anual de Segurança Inter-
na, nesse ano foram registados 1 977
atos criminosos (1 276 por maus-
-tratos e 701 por abandono) e, em
2019, totalizaram 2 014 (1 213/801),
o que representa um aumento de
1,9 por cento.
Rita Silva diz já ter “visto de tudo”
ao longo dos seus 16 anos na associa-
ção Animal. Os abusos sexuais, mais
em galinhas, cabras e burros mas
também em cães e gatos, são os ca-
sos que mais lhe custam a digerir. “A
perversão envolvida, a maldade, são
situações assustadoras.” Os animais
mais pequenos, como as gatas, não
aguentam e acabam por morrer. Os
que sobrevivem ficam com traumas
difíceis de ultrapassar, mas o quadro

já foi pior. “Hoje há mais especia-
listas em comportamento animal
e consegue-se ajudar melhor estes
animais. Por vezes, têm de tomar
ansiolíticos”, adianta.
Dois resgates vêm à memória de
Rita Silva, por razões sentimentais.
Primeiro, o do cão que “tinha os
ossos todos fora do lugar”, de su-
cessivos atropelamentos que sofrera.
Chamava-se Seth, “já era velhote,
tinha cancro” e viveu com ela en-
tre 2008 e 2013. “Foi uma história
muito bonita. Não deixava ninguém
aproximar-se e até ao fim da vida
dele, além do médico ortopedista
que o tratou, fui a única pessoa que
lhe conseguiu tocar.” Segundo, o da
cadela “velhinha, surda e senil, uma
coisa minúscula de cinco quilos”
que lhe chegou às mãos depois de
ter sido atirada de um carro em an-
damento, no Restelo. Também ela já
partiu para o “paraíso” dos cães. Era
a Xana. [email protected]

‘‘NA MEDICINA VETERINÁRIA ESTAMOS AO NÍVEL DA MEDICINA HUMANA:


FAZEMOS TRANSPLANTES, ECOGRAFIAS, RESSONÂNCIAS MAGNÉTICAS...


SE HÁ UNS ANOS SE OPTAVA PELA EUTANÁSIA, HOJE A MAIORIA DAS


PESSOAS TRATA OS ANIMAIS ATÉ AO FIM E GASTA O QUE FOR PRECISO”


JORGE CID, BASTONÁRIO DA ORDEM DOS MÉDICOS VETERINÁRIOS

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