Visão - Portugal - Edição 1441 (2020-10-15)

(Antfer) #1
15 OUTUBRO 2020 VISÃO 47

Diria que as críticas às políticas
de Reagan e de Thatcher são hoje
mais consensuais?
Começa a haver algum consenso, a
questão é para onde se vai. Uma pos-
sibilidade é aquela que Boris Johnson
e Trump dizem: “Vamos continuar
com as políticas de mercado livre
e cortes de impostos para os mais
ricos, mas vamos proteger-vos do
resto do mundo, dos imigrantes.” Na
mensagem de Trump, o problema
são as pessoas do México, da China
e do resto do mundo. A mensagem
do Brexit também era acerca dos “tra-
balhadores polacos ou portugueses
que nos querem tirar o rendimento”.
Uma possibilidade é esse nacionalis-
mo anti-imigração. Mas isto não vai
resolver o problema.
Hoje já todos concordamos que
a desigualdade é um problema a
resolver?
Não iria tão longe. O consenso ainda
é frágil e, nas propostas reais, como
um imposto progressivo sobre a
riqueza, é mais limitado. Mas houve
certamente uma enorme evolução.
Lembro-me de, em 2014, estar num
debate, em Boston, com Elizabeth
Warren e, na altura, ela era muito
cética em relação ao imposto sobre a
riqueza. Seis anos depois, ela com-
petia com Bernie Sanders para ver
quem apresentava o imposto sobre a
riqueza mais elevado. Também assisti
a isso na Alemanha. As coisas estão a
mudar.
Estamos a atravessar uma pande-
mia e uma crise histórica. Como
isso irá mudar as tendências de
desigualdade ou a forma como
olhamos para ela?
A consequência imediata da Covid-19
é o aumento da desigualdade. Pessoas
com salários mais baixos perderam o
emprego, quem tenha uma casa mais
pequena não está na mesma situa-
ção de quem tem uma casa grande
no campo. Também vimos como os
milionários aumentaram a riqueza
em 2020, principalmente no setor
tecnológico, mas não só. Esse efeito
foi exacerbado pela Covid-19, o que
pode motivar respostas políticas.
Vimos, em julho, a decisão de criar
uma dívida pública comum na Eu-
ropa para subsidiar políticas nacio-
nais de combate à crise. No entanto,
não mudámos as regras de jogo na
UE. Continuamos presos à regra de
unanimidade. Isso é um problema
enorme. Esse pacote ainda nem está

O sucessor
do “Capital”

O Capital no Século XXI está num grupo
restrito de livros de economia que, no
momento em que são publicados, fazem
mexer significativamente o debate políti-
co, tendo trazido para a ribalta o tema da
desigualdade e lançando Thomas Piketty
para o estrelato económico. Foi a obra
mais vendida de sempre pela Harvard
University Press (embora algumas análi-
ses concluam que as pessoas raramente
passam das páginas iniciais). No entanto,
o livro parecia sugerir uma relação quase
determinística entre o nosso sistema
económico e a desigualdade. No livro
que publica agora – Capital e Ideologia –,
Piketty procura esclarecer esse equívoco:
o nível de desigualdade numa sociedade
depende de opções políticas e ideológi-
cas, cujo rumo pode ser alterado. Num
esforço de 1 200 páginas, Piketty analisa
a história da concentração da riqueza,
desde as “sociedades ternárias” (clero,
nobreza, terceiro estado) até aos nos-
sos dias, e sublinha que, após algumas
décadas de progresso, os últimos anos
trouxeram um agravamento das desi-
gualdades um pouco por todo o mundo. O
economista culpa o modelo hipercapita-
lista hegemónico, desde os anos 80, que
sacraliza a propriedade e que, sem um
contraponto ideológico após a queda da
URSS, tem sido visto como a única via de
desenvolvimento. Mas também respon-
sabiliza os partidos social-democratas
pela incapacidade de se adaptarem e pela
sua progressiva “elitização”, empurrando
franjas grandes do eleitorado para novos
fenómenos de populismo. Com Piketty, a
análise é normalmente menos polémica
do que as suas propostas, que se con-
centram na área fiscal: agravamento de
impostos sobre o rendimento, criação de
impostos progressivos sobre a riqueza e
sobre as heranças, nova tributação sobre
as emissões de CO2 e uma distribuição
de património para cada adulto. Mas
mais do que argumentar por uma receita,
Piketty parece decidido a convencer-nos
simplesmente de que há outras opções
no menu.

no terreno e, mesmo que seja adopta-
do, já há o risco de não ser suficiente.
Se for esse o caso, o que fazemos?
Este processo de tomada de decisão é
um grande problema, e os países que
estiverem preparados para avançar
em temas como planos de recupera-
ção, orçamento, impostos deveriam
avançar sozinhos. Quem quiser jun-
tar-se, ótimo, mas quem não quiser,
não devia poder bloquear.
Aprendemos lições com a crise
anterior, na Europa? Já ninguém
fala de austeridade.
A austeridade foi um desastre tão
grande... Agora é um facto histórico
que, devido às suas más políticas or-
çamentais, a Europa criou uma nova
recessão em 2013-2014, enquanto os
EUA continuaram a recuperar. Foi
totalmente inútil e um grande erro.
Claro que, após um erro histórico
tão grande, não vamos ser tão maus
a reagir. Mas continuo a achar que
não aprendemos o suficiente. Na
Europa, a maioria das pessoas quer
um plano mais ambicioso e uma
renovação económica, com investi-
mento em tecnologias verdes, mais
justiça fiscal. Espanha, Itália, França,
Alemanha são 75% da população da
Zona Euro e do PIB. Juntamente com
Portugal, Bélgica, Grécia... haveria
uma grande maioria da população
preparada para avançar com políticas
mais ambiciosas, e é um erro grave
continuar com este sistema em que
a Holanda, Dinamarca, Irlanda e o
Luxemburgo podem vetar. O maior
risco que vejo hoje é o programa não
ser suficientemente grande suficiente
e dependermos da política monetá-
ria, com o BCE a imprimir dinheiro.
A verdadeira ação está a ocorrer no
BCE, e essa criação monetária está a
ser usada para aumentar o preço dos
ativos financeiros e do imobiliário,
o que vai chegar essencialmente a
pessoas que já são ricas. É um grande
risco e eu acho que não será bem
aceite.
Defende que a desigualdade tem
estado sempre connosco, mas
diz que não é inevitável. Como
essas duas coisas coexistem? No
seu livro anterior, a equação r >g
[remuneração do capital cresce
mais depressa do que a economia]
foi interpretada quase como uma
lei natural.
É tudo político e ideológico. No
longo prazo, houve uma diminuição
da desigualdade e um crescimen-

JOEL SAGET/GETTYIMAGES

Free download pdf