Visão - Portugal - Edição 1441 (2020-10-15)

(Antfer) #1
15 OUTUBRO 2020 VISÃO 49

50% dos que estão na base, as coisas
não mudaram. Costumavam ter talvez
2% e hoje terão 4% ou 5 por cento.
A grande diferença está nos 40% do
meio, pessoas que não estão nos 50%
[mais pobres] nem nos 10% do topo.
A sua fatia da riqueza total costumava
ser muito pequena, entre 5% e 10 por
cento. Era quase tão negligenciável
como a dos 50% da base, e hoje em
dia andará nos 20% a 30% do total.
No longo prazo, isto é um grande
progresso, mas não é suficiente.
E, nos últimos anos, tivemos uma
mudança, certo?
Sim, esta tendência reverteu-se
um pouco nos últimos 30 anos, no
sentido em que a riqueza dos 50% da
base voltou a descer. E a classe média,
os tais 40% no meio, foi vendo a sua
percentagem de riqueza também a
reduzir lentamente. Não regressaram
ao início do século passado, mas co-
meçaram a cair. Essa é uma preocu-
pação de longo prazo, especialmente
dado o facto de termos tido sempre
uma grande desigualdade, mesmo em
períodos de progresso. Nas discus-
sões, dizemos que a desigualdade tem
caído no longo prazo, mas que ainda
tem uma dimensão enorme. Às vezes,
as pessoas apenas querem ver a pri-

meira parte, e ambas são verdadeiras.
Atribui parte da dificuldade em
estancar a desigualdade a uma
elitização dos partidos de esquer-
da ou social-democratas. Estes
partidos têm de se virar para uma
aproximação mais populista aos
assuntos económicos?
Acho que não é populismo, é ser mais
racional e mais ambicioso. Acho que
os partidos socialistas e social-demo-
cratas e os partidos de esquerda, em
geral, deveriam regressar a uma pla-
taforma económica mais ambiciosa e
procurar reduzir a desigualdade. Até
certo ponto, o problema é que, depois
da queda do comunismo, deixá-
mos de pensar acerca dos diferentes
sistemas económicos. Ficámos todos
convencidos de que havia apenas
um sistema económico e um con-
junto de políticas, e que os governos
não podiam, na verdade, reduzir a
desigualdade, não podiam realmente
mudar as políticas económicas e o
sistema. Tudo o que podiam fazer
era controlar as suas fronteiras, a sua
identidade. Acho que isso contribuiu
muito para a situação que temos hoje,
em que grande parte da discussão
pública é acerca do controlo de fron-
teiras e da identidade [nacional]. Creio
que isto se deve em larga medida ao
facto de termos fechado a discussão
económica, que tem de ser reaberta.
Partidos socialistas e social-democra-
tas, historicamente, foram capazes de
fazer muito. A redução da desigualda-
de que vimos no século XX tem muito
que ver com o surgimento do esta-
do-providência, da Segurança Social,
educação livre, impostos progressi-
vos, e esses partidos desempenharam
um papel muito importante nestas
conquistas. Mas, após a queda do
comunismo, não foram capazes de se
renovar. E isto é um falhanço coletivo.
Só digo para discutirmos novamente
as diferentes possibilidades de sis-
temas económicos e fazer propostas
dentro daquilo a que chamo “socialis-
mo participatório”, um modelo muito
descentralizado de socialismo que,
obviamente, nada tem que ver com o
Estado centralizador do comunismo.
Acompanhou de alguma forma
a experiência portuguesa, com a
aliança dos socialistas a partidos
mais à esquerda?
Sim, acho bom que diferentes parti-
dos de esquerda tenham tido a capa-
cidade de falar uns com os outros. Em
Espanha, demorou muito tempo até

Documentário A adaptação do
livro ao cinema procura fazer
chegar as ideias de Piketty a um
público mais alargado


É tudo político


e ideológico.


Não há


qualquer


razão


determinista


para


termos um


aumento da


desigualdade

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