Visão - Portugal - Edição 1441 (2020-10-15)

(Antfer) #1

50 VISÃO 15 OUTUBRO 2020


isso acontecer. Dito isto, há limites ao
que Portugal pode fazer e à sua capa-
cidade de influência junto da União
Europeia. Precisamos não apenas de
Portugal mas também de Espanha,
Itália, França, Alemanha para assu-
mirem a responsabilidade de mudar
as regras de jogo. Creio que, no fim
de contas, Portugal sofreu muito com
todos os erros cometidos durante os
anos da crise e dos pacotes de ajuda.
O meu único conselho a estas grandes
coligações em Portugal, Espanha ou
Itália é que participem mais no debate
acerca da mudança das regras euro-
peias. Não podemos simplesmente
deixar Macron e Merkel definirem as
mudanças nas regras.
Algum do eleitorado que terá
fugido desses partidos de esquerda
parece ser hoje sensível a mensa-
gens nacionalistas ou de anti-imi-
gração. Acha que essa área política
é capaz de recuperá-lo?
Penso que há duas formas de mudar
a globalização. Uma delas é através do
nacionalismo de direita, que combate
o fluxo do trabalho; a outra é de es-
querda e de combate à livre circulação
de capitais. Na Europa, criámos um
sistema de livre circulação de fluxos
de capitais sem qualquer controlo
e sem tributação comum. Há um
direito quase sagrado a fazer fortu-
na num país, utilizando toda a sua
infraestrutura pública, sistema de
comunicação etc., e depois carrega-se
num botão e transfere-se toda essa
riqueza para outro lado qualquer, e
ninguém sabe onde ela vai parar nem
se pagou ou não impostos. Vinte ou

30 anos depois, vamos ter de taxar
os pobres e a classe média que não
conseguem transferir o dinheiro para
fora. Os grupos sociais mais pobres
ou a classe média estão zangados com
este sistema. É por isso que se viram
para os populistas. A única forma de a
esquerda trazer de volta este eleitora-
do é promovendo políticas redistri-
butivas muito mais ambiciosas.
No seu livro defende um imposto
sobre a riqueza e uma dotação de
capital que funciona como uma
herança para todos. São ideias
radicais? E são populares?
Acho que são propostas de senso
comum e há uma grande maioria a
favor de impostos sobre os multimi-
lionários. Mesmo nos EUA, há uma
grande maioria – não apenas do elei-
torado democrata – a favor disto. O
que proponho não é, de todo, radical.
Por exemplo, no sistema de heranças
que eu sugiro, as pessoas que hoje
recebem zero euros receberiam 120
mil euros aos 25 anos. E alguém que
herdasse um milhão receberia 600
mil. Continua a ser uma diferença
grande. E poderíamos ir mais além,
porque estaríamos ainda muito longe
da igualdade de oportunidades. Fala-
-se de igualdade de oportunidades a
toda a hora, mas, quando chega a uma
implementação prática, as pessoas
ficam com muito medo de que as
crianças pobres ou da classe média
tenham 120 mil euros. Dizem que é
demasiado. Mas se os miúdos ricos
receberem um milhão ou dez milhões
já não há problema. O que proponho
é de senso comum. [email protected]

Fala-se de


igualdade de


oportunidades


a toda a hora,


mas, quando


chega a


altura de uma


implemen-


tação prática,


as pessoas


ficam com


muito medo


Social-democracia Piketty
critica a incapacidade de
adaptação dos partidos
socialistas e social-democratas
a um mundo pós-URSS

JOEL SAGET/GETTYIMAGES
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