Visão - Portugal - Edição 1441 (2020-10-15)

(Antfer) #1

76 VISÃO 15 OUTUBRO 2020


SAÚDE

Convívio A necessidade
de contacto social leva
a que as pessoas se juntem,
pelo “cansaço do isolamento”

EM LONDRES, BERLIM,


PARIS OU VARSÓVIA,


MILHARES DE PESSOAS


SE MANIFESTARAM


COM CARTAZES COM


AS FRASES “MÁSCARAS


SÃO AÇAIMES” OU “NÃO


À DITADURA SANITÁRIA”


A normalização da doença, a sua acei-
tação e o cansaço em relação à Covid-19
têm-se revelado na subida do núme-
ro de infetados nas últimas semanas.
O aligeirar das medidas, principalmente
com mais encontros sociais, “traz graves
problemas”, de acordo com Gustavo Tato
Borges, vice-presidente da Associação
Nacional de Médicos de Saúde Pública,
porque se deixa de haver “interesse e
preocupação em cumprir as medidas
de distanciamento físico e em usar os
equipamentos de proteção individual”,
correm-se mais riscos, e assim “torna-se
mais difícil controlar a pandemia”.
Esta fadiga é visível, por exemplo, nos
casos em que há uma recusa em cumprir
o isolamento. Já foi preciso chamar a po-
lícia perante situações em que o paciente
vocifera em pleno consultório que “isto é
tudo uma farsa, não vou ficar em casa”. O
mesmo aconteceu com Teresa Gonçalves,
médica de Saúde Pública e coordenado-
ra da Unidade de Saúde Pública Lisboa
Norte. “Há cada vez mais resistência.
Transgridem: estão em isolamento, mas
vão para festas e jantares.” Outras tantas
vezes, é o telemóvel do doente que devia
estar em casa que toca, toca, mas este não
atende, tendo a polícia municipal de fazer
uma visita de “cortesia”.


A CONTESTAÇÃO SILENCIOSA
À medida que os números de infeções
escalam, o consenso, antes sólido na
maior parte dos países, de uma união de
sacrifícios para combater a crise sanitá-
ria dá agora sinais de rutura. As novas
regras são contestadas na rua e, até, nos
tribunais. O Governo espanhol viu-se na
obrigação de decretar o estado de emer-
gência em Madrid depois de um tribunal
ter chumbado as medidas de restrição.
Em Londres, Berlim, Paris ou Varsó-
via, milhares de pessoas se manifestaram
com cartazes com as frases “Fake news”,
“Máscaras são açaimes”, “Deixem as nos-
sas crianças respirar” ou “Não à ditadura
sanitária”. Os organizadores destes pro-
testos vão desde defensores de teorias da
conspiração a movimentos antivacinas,
grupos de extrema-direita e, também,
cidadãos descontentes com a limitação
à liberdade de movimentos.


Com a pandemia a não dar tréguas,
Israel foi o primeiro país a decretar um
segundo confinamento da população.
Desde meados de setembro que só fun-
cionam os serviços essenciais e as saídas
de casa estão limitadas ao perímetro de
um quilómetro.
“Não acredito que vá acontecer em
Portugal uma contestação tão ativa como
noutros locais. Mal ou bem, ainda vamos
tendo confiança nas instituições e no Go-
verno, e isso é positivo”, nota David Neto.
No entanto, essa contestação pode ser
silenciosa ao, simplesmente, não se aderir
às medidas de prevenção ou ao aligeirá-
-las. Veja-se o contraste: há uns meses,

muitos lavavam a fruta e as embalagens
com lixívia; depois percebeu-se que era
um exagero. O problema é se deixam de
lavar a fruta ao mesmo tempo que põem
a máscara de lado ou vão para jantares
com a família e amigos.

SNS EM RISCO DE COLAPSO
Os alertas têm surgido de vários lados.
A continuar assim, com especialistas a
apontarem para dois mil casos diários no
fim deste mês e três mil em dezembro, a
capacidade do Sistema Nacional de Saúde
esgota-se. “Vai haver tanta pressão nos
serviços, que talvez não seja possível res-
ponder ao mesmo ritmo a que crescem os
novos infetados”, diz o médico de Saúde
Pública Tato Borges.
Sem a perceção do real risco da
doença, os hábitos mudam. O facto
de a maioria não ter sentido as con-
sequências da Covid-19, no início,
fez com que ao desconfinamento se
associasse algum relaxamento. E este
pensamento só se alterará quando o
risco aumentar de novo, mas aí, atesta
o psicólogo David Neto, “temo que já
seja tarde demais”.
Abrandar a disseminação do vírus
continua a estar nas mãos da sociedade
e nos seus comportamentos. Se já alterá-
mos hábitos, teremos de manter a noção
de que “a pandemia não acabou e pode
demorar muito tempo”, frase que Teresa
Gonçalves não se cansa de dizer.
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