Visão - Portugal - Edição 1441 (2020-10-15)

(Antfer) #1
82 VISÃO 15 OUTUBRO 2020

CINEMA

A


A ida para Londres, em 2010, foi
como uma fuga, cansada da exposição
mediática, dos “fotógrafos escondidos
atrás de vasos”, num percurso como
atriz que começou muito cedo e
passou por séries televisivas populares
entre os adolescentes, como Riscos e
Morangos com Açúcar. Na prestigiada
London Film School realizou, em 2011,
o breve documentário Laundriness,
que não passou despercebido ao
realizador britânico Mike Leigh. “Esse
filme foi muito importante no meu
processo de aprendizagem”, diz Ana
Rocha de Sousa, 41 anos.
Com a sua primeira longa-metragem,
uma coprodução portuguesa e inglesa,
Listen, trouxe seis prémios do Festival
de Veneza (incluindo o auspicioso
Leão do Futuro), um feito histórico
para o cinema português. O filme,
sobre os processos de retirada dos
filhos em risco às famílias por parte da
assistência social em Inglaterra, tinha
estreia marcada apenas para 2021, mas
a data foi antecipada e chega às salas
portuguesas já no próximo dia 22.
“Não tenham medo de ir ao cinema!”,
apela a realizadora.
Na sua vida chegou primeiro o
sonho de ser atriz ou realizadora?
Recuando à minha infância, quando
era mesmo pequena, sempre quis
ser atriz. Comecei no teatro, com o
António Feio, mesmo muito nova... E
quando tive uma participação no filme
do João Botelho [O Dia dos Meus
Anos, de 1992], a minha mãe percebeu
que aquilo era uma coisa que eu
queria mesmo a sério. Aos 17 anos, por
ter estado na companhia do António
Feio [Pano de Ferro], de onde saíram
o Nuno Lopes, a Carla Chambel,
imensos atores..., fui às audições da
série Riscos e acabei por ser escolhida.
Foi uma mudança da noite para o dia,
aos 17 anos. Se soubesse o que sei hoje,
voltaria a fazer tudo igual.
E quando pensou que gostaria de
passar para o outro lado da câmara?
A realização surge quando,
paralelamente ao meu trabalho de
atriz, fui fazendo uma licenciatura em
pintura, na Escola Superior de Belas-
Artes [em Lisboa]. Aí, experimentei
fazer não só pintura, mas fotografia,
instalações, vídeo... E isso começou
a preencher-me muito; começou
a ser maior do que eu. Ao fim de
não sei quantos anos, percebi que
havia uma forma de juntar tudo: o

A VIDA NÃO É A PRETO E BRANCO
Sem ser o relato de um caso específico real, Listen baseia-se assumidamente
no polémico sistema britânico de avaliação de crianças em risco
Listen tem pouco mais de 70 minutos de duração, mas contém cenas difíceis de
esquecer. De forma muito realista, o filme (que chega às salas no próximo dia 22)
transporta-nos para um agregado familiar português numa cidade inglesa, não
nomeada. O contexto é difícil: o pai, sem emprego fixo, está à espera de pagamentos
que teimam em atrasar-se; o aparelho auditivo da pequena Lu avariou-se, o que
separa a menina surda do mundo dos sons; o filho mais velho, de 12 anos, está em
casa cheio de febre; a mãe não tem mãos a medir, cuidando do seu bebé sem deixar
o trabalho como mulher a dias. O contexto acaba por chamar a atenção dos serviços
sociais, que optam por, numa operação relâmpago com a ajuda da polícia, retirar as
três crianças aos pais (excelentemente interpretados por Lúcia Moniz e Rúben Garcia).
Percebe-se, desde início, que a realizadora Ana Rocha de Sousa (que coassina o
guião com Paula Alvarez Vaccaro e Aaron Brookner) quis evitar a armadilha do
maniqueísmo: aqui não há bons e maus, não é uma história que se conta a preto e
branco, antes explorando todas as zonas cinzentas. Nem a família parece isenta de
responsabilidades, nem a máquina do Estado é retratada, simplesmente, como uma
burocracia sem coração. E ainda assim... Sabendo que a história aqui contada tem
raízes bem fincadas na realidade britânica atual, é inevitável sair da sala de cinema
com várias inquietações e questões na cabeça (até porque o fim é, como nas nossas
vidas, aberto para um futuro que não conseguimos adivinhar). Depois de investigar
este assunto a fundo, Ana até garante que a realidade é, demasiadas vezes, bem pior
do que a retratada no seu filme.
Se este é um cartão de visita do cinema que Ana Rocha de Sousa quer fazer, pode bem
ser resumido nesta fórmula: “Identifico-me, sobretudo, com o cinema de autor, mas
acredito que se o cinema não chegar às pessoas não está a cumprir a sua finalidade, a
sua missão.” P.D.A.
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