Visão - Portugal - Edição 1441 (2020-10-15)

(Antfer) #1

84 VISÃO 15 OUTUBRO 2020


CINEMA

Sim, foi uma fuga. Porque esse lado
da vida pública de um ator – de que,
muitas vezes, as pessoas se esquecem



  • tornou-se muito agressivo e nefasto
    para mim, de uma forma visceral mes-
    mo. Estar todas as semanas em pági-
    nas de revistas que falavam de coisas
    que não existiam... E eu achava que
    não merecia isso. Em Londres, deixei
    esses dias para trás, numa espécie de
    anonimato paradisíaco. Foi um grande
    corte. E a London Film School signifi-
    cou ainda mais do que eu ia à procura.
    Fez-me avançar anos-luz. Percebi que
    não é por acaso que é considerada
    uma das melhores escolas do mundo.
    Há muito de britânico neste seu
    filme. O Mike Leigh e o Ken Loach
    são influências claras?
    Toda a gente tem feito essas
    referências... A verdade é que não são.
    Mas também é preciso dizer que é
    impossível passar por aquela escola e
    sair isento das referências do realismo
    social britânico. Primeiro pode-se
    estranhar, mas depois entranha-se.
    E eu ali encontrei uma casa, como já
    tinha acontecido nas Belas-Artes, em
    Lisboa. Há vozes que ficam desses
    lugares para toda a vida, e guiam-
    nos ao longo dos nossos processos
    criativos e projetos, sejam vozes
    amigáveis ou de conflito.
    Mas não assume, então, essa
    influência do realismo social
    britânico?
    Não. Porque o meu filme não partiu
    daí, de todo. Já estava em Lisboa e já
    tinha nascido a minha filha [Amália
    nasceu em 2014] quando vi aquela
    notícia sobre uma mãe portuguesa, em
    Inglaterra, a quem a Segurança Social
    retirou o filho. Isso fez-me querer
    saber mais sobre o tema. E sentia
    que tinha chegado o meu momento
    de fazer alguma coisa; recomeçar,
    depois duma paragem de que precisei
    quando voltei para Portugal. Mas
    depois de todo o investimento que
    tinha feito, não podia ficar parada. No
    início de 2016 já tinha a minha filha
    num braço e o computador no outro...
    Vi essa notícia na televisão. Uns
    tempos depois, a VISÃO fez um artigo
    desenvolvido sobre o assunto [foi o
    tema de capa do número 1209, de 5 de
    maio de 2016]. Chamou-me a atenção,
    até pela minha vivência em Inglaterra
    e, provavelmente, por ter sido mãe há
    pouco tempo... Procurei mais sobre o
    tema. O filme, aliás, não é sobre aquele


caso em particular da primeira notícia.
Tinha de ter a certeza de que havia
ali um sentido, alguma coisa, não
podia partir para fora de pé com uma
temática destas... E, quando entendi
melhor as dinâmicas todas, percebi
que o assunto era mesmo muito grave.
No meu filme tive muito cuidado em
retratar bem e respeitar os dois lados.
Mas quero dizer que a realidade é,
profunda e violentamente, pior do que
aquilo que retrato ali. A principal razão
para não ter mostrado a realidade
como ela é foi porque as pessoas
dificilmente iam acreditar. Espero
que o filme levante muitas questões a
quem o vê – não apresenta soluções,
não é essa a minha missão – e peço,
então, que as pessoas procurem
informação, que se informem. É um
tema muito polémico, e até abafado,
mas tem havido trabalhos jornalísticos
sérios sobre o assunto. No meu filme
nem chego a abordar a questão do
tráfico de crianças. E isso não é ficção.
Acabou por fazer um grande
trabalho prévio de investigação...

“PRETENDO DEFENDER


A INOCÊNCIA.


E A INOCÊNCIA


TAMBÉM EXISTE


QUANDO NÃO PARECE,


MESMO QUANDO TUDO


APONTA NO SENTIDO


CONTRÁRIO”


Tela em branco O prémio Leão do Futuro,
no Festival de Veneza, traz associado um cheque
de 100 mil dólares para a realizadora
e os produtores. Ana Rocha de Sousa, mais motivada
do que nunca, tem vários projetos em curso
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