Visão - Portugal - Edição 1441 (2020-10-15)

(Antfer) #1
15 OUTUBRO 2020 VISÃO 9

T


odas as manhãs, contanto que fizesse sol, o
velho José Palácios saía para passear. Ivete, a
filha, via-o afastar-se, apoiado à bengala, um
vulto esguio, alto, sempre vestido de branco.
Regressava à hora do almoço, tão silencio-
so como quando partira — mas com um leve
sorriso a iluminar-lhe o rosto.
José Palácios nunca fora um homem de
esbanjar palavras. Ivete lembrava-se dele
quando ainda eram sete pessoas em casa, toda
a gente falando ao mesmo tempo durante as refeições,
e aquele silêncio sólido crescendo como uma nuvem
negra à cabeceira da mesa. Quando se zangava, apenas
erguia um sobrolho, e logo todas as vozes se calavam, a
mãe assustada, aconteceu alguma coisa, José?, enquanto
os irmãos trocavam olhares inquie-
tos. Ela, a caçula, de cabeça baixa.
Tinha muito medo dos silêncios do
pai. Contudo, também havia silêncios
bons. Ivete lembra-se de estar senta-
da nos joelhos do pai, ambos calados,
ouvindo o sol descer sobre o capinzal.
Não há nada que envelheça tanto uma
pessoa quanto assistir à decadência
dos pais. Agora também ela estava
reformada, e eram dois velhos numa
casa demasiado pequena para tantos
silêncios.
Ivete não sabia para onde o pai
ia, sempre que, depois de terminar a
sua xícara de café, acompanhada por
duas torradas com manteiga, saía a
passear. O velho não tinha amigos
(nunca tivera) e, aos 98 anos, parecia-lhe improvável
que mantivesse uma amante secreta. Sempre que lhe
perguntava, onde é que o pai vai?, recebia como resposta
um daqueles silêncios ásperos, que desde criança tanto a
incomodavam.
Certa manhã, decidiu segui-lo. José Palácios cruzou
dois quarteirões, em passadas lentas e esforçadas. Ivete
soube para onde o velho se dirigia ainda antes de avistar
os compridos muros, sobre os quais se erguiam altas
copas verdes — o Jardim Zoológico. Deteve-se, surpre-
sa. Enjaular animais selvagens, ou exibi-los em circos,
eram práticas que enfureciam o pai. Ouvira-o algumas
vezes — com as suas raras palavras — indignar-se quer
contra quem colocava animais em zoos, quer contra
quem lá os ia visitar.
O velho Palácios fora caçador profissional. Nunca fa-
lava desse tempo. Um dia, um amigo de Ivete aparecera
em casa com um livro sobre caçadores de elefantes, que

comprara num alfarrabista. Tinha um capítulo inteiro
dedicado a José Palácios. O velho agradecera a oferta.
Na manhã seguinte, Ivete encontrou o livro no caixote
do lixo, com as páginas arrancadas e rasgadas. Acho isto
uma crueldade — disse ao pai, mostrando-lhe o volu-
me esventrado. O velho, sentado na cama, em cuecas,
pousou o jornal, tirou os óculos e olhou-a sem dizer
palavra.
E agora ali estava ele, parado diante da ilha dos ele-
fantes. Àquela hora havia pouquíssimas visitas. O velho
parecia saído de um postal antigo, assim, todo de brim
branco, bengala de pau preto e fulgurante chapéu pana-
má.
Um dos elefantes viu-o, e avançou a trote em direção
ao fosso. Deteve-se diante dele, erguendo a tromba, ao
que o velho respondeu levantando a
mão, num aceno cúmplice. Parecem
amigos de infância, pensou Ivete,
parecem parentes próximos, e então
deu-se conta da humidade súbita,
uma neblina espessa, que descia do
céu e ia pouco a pouco desbotando
as árvores, as pessoas, os animais e
os edifícios.
Olhando para o pai como para
um desconhecido, Ivete sentiu que
pela primeira vez o reconhecia: um
homem nos confins do seu exílio.
José Palácios e o elefante, um diante
do outro, eram como dois reis no
degredo.
A mulher recuou em silêncio. En-
controu a casa maior, mais desolada,
a sala escura e fria, os quartos alheios, cheirando a bolor
e abandono. Devíamos voltar para África, disse ao pai,
nessa noite, enquanto lhe servia a sopa. O velho sorveu
o caldo em silêncio, uma lenta colher após a outra. Não
quero morrer aqui, acrescentou Ivete. José Palácios er-
gueu os olhos:
Há muitos anos matei um elefante, disse. Uma fêmea.
Percebi demasiado tarde que ela tinha uma cria peque-
na. Entreguei essa cria a um jardim zoológico.
Calou-se. Ivete deu-lhe a mão. Estamos velhos, eu e
tu. Continuou José Palácios. Eu, demasiado velho para
morrer. Quero dizer, para morrer decentemente, para
escolher o lugar onde morrer.
Chovia lá fora. Um cão ladrou algures, muito longe.
Uma porta bateu. Pareceu a Ivete que o ar se enchia do
cheiro vivo do capim húmido, macerado, ela sentada
nos joelhos do pai, ouvindo o sol cair sobre a savana.
[email protected]

Ivete lembrava-se dele
quando ainda eram
sete pessoas em casa,
toda a gente falando
ao mesmo tempo
durante as refeições,
e aquele silêncio
sólido crescendo como
uma nuvem negra à
cabeceira da mesa
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