Visão - Portugal - Edição 1441 (2020-10-15)

(Antfer) #1

92 VISÃO 15 OUTUBRO 2020


CRÓNICA

Conselhos


sensatos


POR CAPICUA / Rapper

Grande parte dessas
sábias entidades
cheias de boas
práticas a disseminar
não tem sequer filhos,
ou então é de uma
casta de mulheres-
-Bree-van-de-Camp

S


into que grande parte da experiência da maternidade
consiste em ignorar conselhos. Conselhos de
especialistas, de revistas da especialidade e de pessoas
especialmente chatas que se acham especiais. Claro que
se me perguntarem se, no geral, toda essa gente está
com a Razão (como se a razão fosse uma sábia amiga
mais velha com quem se vai beber um chá de sensatez),
eu digo que sim. Mas digo também que, infelizmente,
a grande maioria das pessoas normais trabalha com a Realidade (essa
implacável colega de expediente, que nos obriga a esfalfar o couro e que
nos passa sempre à frente, na promoção e na fila do chazinho de noção).
No geral, diria até que grande parte dessas sábias entidades cheias de
boas práticas a disseminar não tem sequer filhos, ou então é de uma casta
de mulheres-Bree-van-de-Camp, cujas vidas parecem cobertas de uma
fina camada de glacé e camisas engomadas, mas que certamente têm uma
vida secreta de taras, perversões e psicopatia recalcada.
Começa logo de manhã. Uma das coisas que mais ouvi como boa-dica-^
-de-sobrevivência-no-puerpério, é tomar um banho e vestir a roupa
como quem vai sair para trabalhar, evitando o pijama, o cabelo oleoso e a
busca por uma dignidade vaga e distante. Ora, isso só é possível às vezes.
É que se houve tempos em que o bebé ficava alegremente na
espreguiçadeira a olhar para mim enquanto tomava banho, neste
momento isso não é possível. Ele faz verdadeiras birras-manif para me
impedir de entrar no duche e só com outro adulto disponível para o
redirecionar, é que eu consigo pôr um pé lá dentro.
Ter uma rotina é outro desafio. É talvez o conselho mais comum
durante toda a primeira infância e, mesmo reconhecendo a sua validade,
sou incapaz de cumprir com uma. Não por casmurrice, mas porque
simplesmente não temos uma rotina, e quando, artificialmente, tentamos
impô-la, acabamos por levar uma grande rasteira do puto (quando
achávamos mesmo que estávamos a conseguir), ou temos de ir para algum
lado e lá desregulamos os horários das sestas e refeições, voltando ao
velho-improviso-nosso-de-cada-dia.
Não o adormecer (1) ao colo, (2) na mama, (3) nem noutro sítio que não
a cama dele é música para os meus ouvidos, em teoria, mas, na prática (1),
no desespero é o que tiver de ser (colo, carrinho, marsúpio, automóvel ou
cama de rede), (2) é fácil e a meio da noite é a salvação da lavoura, (3) se
na cama dele implica uma hora de joelhos, braço torcido entre as grades
até à dormência, choradeira com baba e ranho, levanta-deita-levanta e os
dez cantos dos Lusíadas lidos, relidos e comentados, vai na minha cama
mesmo. E isso faz logo a ponte com o conselho siamês de não deixar o
bebé dormir com os pais, porque passados os primeiros meses de berço
lateral acoplado e depois de ter ido para a cama de grades, quando acorda
a meio da noite, poucas vezes tenho a convicção das mães-samurais,
que conseguem readormecer os bebés até à consolidação do sono, para
devolvê-los à procedência. Eu, simplesmente, abro os botões do pijama,
deixo que o leite o adormeça, e durmo durante e depois desse processo,
até que ele me acorde novamente passado umas horas.
Também não consigo evitar algum tempo de ecrã à refeição quando
está especialmente pesado, o dia, a birra, ou a paciência. Sempre com
culpa. E, no geral, para ser bem sincera, sinto que, se todos estes conselhos
de puericultura são impossíveis de praticar no meu dia a dia, mais difícil
ainda é aplicar os conselhos para a mãe: tempo de autocuidado, rotina de
exercício, manutenção da vida social, tempo para o casal...
Vamos ser francos, grande parte da experiência da maternidade
consiste em trabalhar para o divórcio, para a exaustão e para aquelas
doenças chatas que autoinfligimos diariamente em doses homeopáticas
de descuido, ansiedade e microcomportamentos nefastos (como comer
à pressa, dormir pouco, carregar pesos e, sobretudo, tentar seguir
conselhos sensatos). [email protected]
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