Clipping Banco Central (2020-10-17)

(Antfer) #1

ANDRÉA PACHÁ - Redução de danos


Banco Central do Brasil

O Globo/Nacional - Opinião
sábado, 17 de outubro de 2020
Cenário Político-Econômico - Colunistas

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Vivendo juntas nas últimas três décadas, Isabel e Ana
nunca se preocuparam em formalizar a união estável,
conversar sobre regime de bens ou planejamento
sucessório. Vindas de uma geração extremamente
preconceituosa, escolheram o convívio discreto, apenas
com amigos mais íntimos e familiares de Ana.
Envelheceram uma ao lado da outra e, quando Isabel
apresentou os primeiros sinais de esquecimento, Ana
achou natural; afinal, estavam ambas com mais de 80
anos de idade.


Embora não verbalizassem, começaram a se preocupar
com problemas que poderiam surgir a partir de então.
Como se apresentariam como responsáveis, caso um
tratamento médico fosse necessário? Como
movimentariam as contas bancárias individuais? Como
regularizariam imóveis, adquiridos em nome de uma só,
com a contribuição de ambas?


Nada fizeram. Adiaram os planos para o futuro mais
uma vez. Nenhuma das duas, como nenhum de nós,
contava com o imponderável, uma pandemia que nos
confrontou de forma permanente com a morte e a
doença. Internada com sintomas graves, vítima da


Covid-19, Ana não soube quando os sobrinhos de
Isabel invadiram o lar do casal, internaram a tia num
abrigo e trocaram as fechaduras da casa, impedindo o
acesso até aos objetos pessoais da companheira.

Não é agradável falar da morte. Nem organizar
despedidas, notadamente numa sociedade que proíbe a
tristeza, esconde a velhice e a deterioração, porque
incompatíveis com os ideais de consumo e satisfação. A
pandemia, no entanto, escancarou a urgência da vida,
exigindo ações para minimizar os danos a quem
amamos.

Os dados do Colégio Notarial do Brasil apontam para
um crescimento de 18,2%, em relação ao mesmo
período do ano passado, nos registros de testamentos.
Em abril, foram 1.381, passando para 2.477 em
setembro deste ano. Além de estabelecer maneiras de
distribuir o patrimônio, reduzindo conflitos e discussões,
por meio do testamento também é possível expressar
desejos sobre questões pessoais e morais. O mesmo
aumento se observa na formalização das uniões
estáveis, cujos registros entre maio e agosto deste ano
subiram 32%, coincidindo com a autorização do CNJ
para que os atos pudessem ser praticados
remotamente.

Amor e morte são fenômenos existenciais que definem
a humanidade. Exatamente por isso, as preocupações,
em momentos limítrofes, se voltam para esses aspectos
da existência. Se não temos controle sobre a
devastação causada pela pandemia, nem integramos
aquele grupo ignorante que nega a doença e
desqualifica a dor, é fundamental que nos ocupemos de
planos e atitudes que fortaleçam a autonomia e o
cuidado, reduzindo perdas e danos inevitáveis.

Embora a falta de planejamento atinja todos,
indistintamente, no caso dos relacionamentos
homoafetivos os impactos são mais perversos e
proporcionais à intolerância e ao preconceito. Se é
verdade que nenhum relacionamento pode ser excluído
da proteção do Estado, e se o Judiciário tem garantido,
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