Clipping Banco Central (2020-10-17)

(Antfer) #1

A cadeira do juiz


Banco Central do Brasil

Folha de S. Paulo/Nacional - Poder
sábado, 17 de outubro de 2020
Cenário Político-Econômico - Colunistas

Clique aqui para abrir a imagem

Autor: Demétrio Magnoli


Juizes que fazem política fracassam duas vezes, como
políticos e como magistrados


Amy Cone y Barrett, a juiza indicada à Suprema Corte
dos EUA, é uma originalista. Os fundamentalistas
religiosos querem que as sociedades se curvem aos
textos sagrados "tal como foram escritos".


Os juízes originalistas são fundamentalistas
constitucionais: ignoram a dinâmica histórica em nome
de um literalismo absoluto. Mas, paradoxalmente, a
confirmação de Barrett descortina a possibilidade de um
necessário reordenamento da democracia americana.
Além disso, ajuda o Brasil a diagnosticar a moléstia que
debilita o STF.


Na ponta oposta dos originalistas encontram-se os
neoconstitucionalistas, representados no STF por Luís
Roberto Barroso. A corrente jurídica acredita que a
norma formal (o que está escrito) deve se subordinar à
norma axiológica (os princípios morais genéricos
inspiradores da Constituição). O juiz converte-se, a


partir daí, em intérprete livre do texto legal, com a
prerrogativa de infundir-lhe significados que contrariam
seus significados explícitos. Abre-se a autopista do
ativismo judicial: o sopro purificador do juiz-ativista
produz legislação, ocupando a cadeira dos
parlamentares.

A maioria dos juizes situam-se em algum ponto
intermediário entre os polos extremos. Ruth Bader
Ginsburg, a juiza icônica que logo será substituida por
Barrett, tentava equilibrar a letra da lei com os
imperativos da mudança social Ela defendeu o direito ao
aborto, proclamado no célebre julgamento do caso
Roevs. Wade (1973). Contudo, anos atrás, explicou
como aquela decisão da Suprema Corte provocou
resultados perversos.

Na hora de Roe vs. Wade, a opinião pública americana
inclinava-se para o direito ao aborto. Mas, como o
impasse foi solucionado pelos juizes, não pelo
Congresso, descortinou-se o terreno para uma eficaz
propaganda conservadora. Os grupos antiaborto
acusaram a corte de impor ao povo cristão a vontade de
uma elite mundana, apóstata, sem Deus. A campanha
teve sucesso, cindindo a sociedade quase ao meio e
transformando o tema em fonte de radical polarização
partidária. Ginsburg teria preferido uma decisão política,
pela via parlamentar, como na Itália, em 1978, e na
Irlanda, em 2018.

A originalista Barrett alinha-se à proteção incondicional
do direito à posse e porte de armas pois lê a Segunda
Emenda "tal como foi escrita". A emenda é de 1791, na
esteira da Guerra de Independência, num país de
proprietários de escravos e de colonos que se
espraiavam por terras indígenas. Na época, inexistiam
as armas automáticas capazes de ceifar dezenas
devidas em minutos. De fato, a juíza literalista subverte
o espírito da lei ao interpretar a emenda como um direito
ilimitado.

Já o ativismo do jurista iluminado submete a nação à
sua vontade, circundando as dificuldades inerentes à
Free download pdf