Clipping Banco Central (2020-10-19)

(Antfer) #1

DANIEL MARTINS DE BARROS - Religião, quarentena e cloroquina


Banco Central do Brasil

O Estado de S. Paulo/Nacional - Metrópole
segunda-feira, 19 de outubro de 2020
Cenário Político-Econômico - Colunistas

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Autor: DANIEL MARTINS DE BARROS


Política, futebol e religião não se discutem, aprendemos
desde criança. "Para não dar briga", orientam os pais.
Trata-se de uma explicação pragmática, que
prudentemente aconselha a evitar conflitos. Mas
convenhamos que é bastante limitada. Por que esses
assuntos são tão sensíveis? Por qual motivo as pessoas
se enfurecem quando discordam sobre eles? Ninguém
sai gritando com os amigos que preferem o arroz por
cima do feijão, ou que não conseguem compreender
que Seinfeld é muito melhor do que Friends. Por que
isso acontece com alguns temas e não com outros?
Evidentemente não pode ser a importância prática,
como é fácil perceber nas brigas em estádios.


Isso ocorre porque há assuntos que tocam em pontos
ligados a nossa identidade mais profunda; eles ativam
nossa convicção antes que possamos pensar. Todo
raciocínio a ampará-las é posterior, trazido a reboque da
certeza que se impõe em nossa consciência. Certas ou
erradas, essas certezas resistem à argumentação
contrária. É uma sensação tão arraigada que quando
estamos tomados por ela e somos apresentados a


evidências contrárias às nossas convicções, diante de
um conflito inconciliável entre o que sentimos e o que
estamos percebendo, não é raro que distorçamos a
lógica para sustentar nossa crença. Você já viu sua tia
ou seu cunhado fazerem isso, mas talvez não soubesse
que faz exatamente a mesma coisa. Cada um dos lados
se exaspera com a refratariedade do seu interlocutor em
ser razoável - atender aos apelos da razão - mas ambos
o fazem com a mesma intensidade.

Esse é um dos grandes combustíveis para as brigas: de
fato é impossível argumentar racionalmente sobre
crenças que adquirimos sem a participação da razão.
Talvez esse seja o efeito mais pernicioso de termos
permitido que a pandemia de covid-19 fosse cooptada
por agendas políticas. Inadvertidamente criamos um
contexto no qual decisões que deveriam ser
exclusivamente técnicas, pautadas pela razão, se
tornassem sujeitas a essa irracional influência da
identidade ideológica. Não se tratava mais de avaliar se
as ideias tinham justificativa ou base, tratava-se de
carimbá-las como certas ou erradas. Morais ou imorais.
Política, religião e futebol ganharam companhia, tanto à
esquerda como à direita. Cloroquina não se discute.
Quarentena não se discute. Uma vez que tocaram a
pegajosa mistura definidora de identidade pessoal foram
tragadas cada vez para mais longe do alcance da razão.

Foi assim com as pessoas que cegamente aderiram a
um tipo particular de quarentena, desprovida da
possibilidade de questionamento; para elas tratava-se
menos de uma medida sanitária do que um dogma. São
tão parecidos com fiéis que hoje estão sofrendo com a
progressiva flexibilização. É compreensível: para quem
se convenceu que era um erro moral colocar o nariz
para fora de casa, a abertura de shoppings ou parques
parecerá um estímulo ao pecado. Fotos de praias
lotadas são piores do que imagens de orgias à luz do
dia.

Nada muito diferente dos defensores da cloroquina.
Para que não restasse dúvida de que a farmacologia
fora politizada o presidente Bolsonaro tornou a questão
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