Clipping Banco Central (2020-10-22)

(Antfer) #1

Meritocracia: que bicho é esse?


Banco Central do Brasil

Folha de S. Paulo/Nacional - Poder
quinta-feira, 22 de outubro de 2020
Cenário Político-Econômico - Colunistas

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Autor: Fernando Schuler


Base de direitos iguais é ponto de encontro entre
liberalismo e esquerda contemporânea


Daniel Markovits lançou um livro chamado "The
Meritocracy Trap" (a armadilha da meritocracia, ainda
sem edição no Brasil), com as habituais denúncias
contra o "mito" ou a "farsa" da meritocracia. O
argumento central é um velho truísmo. Nossas
sociedades são desiguais, as famílias entram no jogo e,
por óbvio, os pontos de partida de cada um na vida são
muito diferentes.


O interessante desse debate é que raramente alguém
diz quem exatamente defende a ideia sem sentido de
que nossas sociedades sejam meritocráticas. As
referências sempre se dirigem a uma vaga "cultura
popular" que preza o mérito, ou recomenda que as
pessoas confiem nelas mesmas e ponham a mão na
massa (a cultura da autoajuda é isso, não?).


Nos anos 1950, o sociólogo britânico Michael Young
escreveu um livro distópico, "The Rise of The


Meritocracy" (a ascensão da meritocracia, também sem
edição no Brasil), tentando imaginar como funcionaria
uma sociedade em que as posições de poder fossem
acessíveis aos mais talentosos. A coisa toda era, por
óbvio, uma grande ironia. E um inferno totalitário,
apenas isso.

Há uma confusão elementar nisso tudo. Uma coisa é
dizer que esforço e a disciplina fazem diferença na vida,
outra é imaginar que o mérito seja a base sobre a qual a
sociedade distribua recursos e posições de poder. As
organizações podem fazer isto, com base em critérios
próprios, mas não a grande sociedade, onde os critérios
são dispersos (ainda bem), e onde o acaso cumpre um
papel essencial.

Hayek matou esta charada quando registrou que o
mercado não remunera mérito e sim a criação de valor,
segundo a "votação" que cada um faz, a cada momento,
a partir de suas próprias preferências, quando decide ou
não pagar por alguma coisa. E que a condição de
nascimento, assim como uma "mente brilhante, uma
bela voz, um rosto bonito ou mãos habilidosas (...) são
tão independentes dos esforços de um indivíduo quanto
as oportunidades ou experiências que já teve".

E que seria um inferno, em especial para os menos
favorecidos, uma sociedade em que de fato se
acreditasse na lorota de que uma boa renda é prova de
mérito e uma má posição pressupõe sua ausência.

Ao invés de perder tempo com moinhos de vento,
deveríamos discutir com seriedade qual o parâmetro de
justiça plausível em uma sociedade aberta. A melhor
que conheço diz o seguinte: direitos e deveres iguais
para todos e uma base equitativa de oportunidades para
cada um. Isso nada tem a ver com igualdade de
oportunidades, que implicaria a eliminação de tudo
aquilo que possa servir de vantagem para alguém na
ideia tola de que "a vida é uma corrida".

O grande Bernard Williams tratou disso com primor.
Igualar oportunidades implicaria eliminar a influência do
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