WILLIAM WAACK - A cor da vacina
Banco Central do Brasil
O Estado de S. Paulo/Nacional - Política
quinta-feira, 22 de outubro de 2020
Cenário Político-Econômico - Colunistas
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Por ter muita raiva da China ou de João Doria, o
rompante de Jair Bolsonaro prometendo que não vai
comprar a vacina chinesa - desautorizando o general da
Saúde - ajuda a entender a razão de capitães
comandarem uma companhia, enquanto generais
comandam divisões, exércitos, grupos de exércitos. É a
falta de visão de conjunto.
Bolsonaro submeteu tudo ao projeto de reeleição,
confundindo seu destino político com o do País. É
postura comum a políticos de várias colorações, mas,
no caso de Bolsonaro, a obsessão com o ganho
eleitoral de curtíssimo prazo paradoxalmente ameaça
seu próprio projeto de reeleição. A popularidade desse
presidente, como a de outros, está diretamente ligada
ao desempenho da economia, e esse desempenho (até
o fim de 2022, digamos) é função de uma série de
decisões políticas difíceis que ele está protelando - em
nome do conforto da popularidade no curto prazo.
Da mesma maneira, mais atrapalha do que ajuda a
economia brasileira, que depende em grande parte do
agronegócio, que depende em grande parte da China,
alinhar-se à agenda pessoal do atual presidente
americano, Donald Trump. Nem é o caso de se
perguntar se esse personagem estará ainda na Casa
Branca daqui a menos de duas semanas. Mesmo que
Trump produza um excepcional milagre eleitoral e se
reeleja, ao abraçá-lo da forma subserviente e
bajuladora, Bolsonaro comete um erro básico de política
externa: ignorar o fato de que países não têm amigos,
só têm interesses.
Ao que tudo indica, está perdida a aposta bastante
simplória de que o "laço pessoal" com o homem mais
poderoso do mundo presidindo o país mais rico do
mundo traria ao Brasil imediatas vantagens em acesso
a tecnologia, mercados, instituições multilaterais e
projeção no cenário internacional. No caso específico da
China (que hoje é quem tem o homem mais poderoso
do mundo e a maior economia), a pressão de Trump
sobre o Brasil evidentemente leva em conta apenas os
interesses dos Estados Unidos, enquanto Bolsonaro
sacrifica um vantajoso ponto de partida, que é a
possibilidade de jogar entre os dois no grande confronto
do século.
Aqui entra também a questão da "diplomacia da vacina",
na qual os chineses já demonstram notável vantagem
sobre os americanos. Ao contrário dos Estados Unidos,
a China está anunciando "acesso preferencial" à vacina
produzida pela Sinovac a países em desenvolvimento.
Washington tem à disposição produtos semelhantes
desenvolvidos por empresas privadas de sólida
reputação mundial, mas demonstrou pouco interesse
em distribuir vacinas fora dos EUA.
O Brasil é parte dessa abrangente ofensiva chinesa,
com a qual Xi Jinping pretende ampliar ainda mais peso
e influência do país, mas o que parece motivar
Bolsonaro a falar mal da vacina comandada pelo
governo comunista chinês não é o espectro (sim, esse
absurdo transita em franjas do bolsonarismo) de uma
"inoculação" de ideias esquerdistas via vacina. Ele teme
uma candidatura para competir com ele "pela direita" e,
seja qual for a razão, enxerga em Doria esse
personagem.