Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 160 (2020-11)

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16 Le Monde Diplomatique Brasil^ NOVEMBRO 2020


barcar no trem expresso do desenvol-
vimento chinês” – para retomar a fór-
mula de Xi Jinping, calorosamente
aplaudida em 2017 pelos participan-
tes do Fórum Econômico de Davos –,
ela é hoje forte o suficiente para pro-
por quadros de socialização geopolí-
ticos e geoeconômicos alternativos
aos dos Estados Unidos. Foi a China,
sob vigilância desde a administração
Clinton e hoje plenamente “emergi-
da”, que entrou no foco do Exército
norte-americano com o estabeleci-
mento em 2018 de um novo comando
prospectivo (“The Futures
Command”). Sua missão não era, na-
quele momento, dissertar sobre a
maneira de “conquistar corações e
espíritos” na “guerra global contra o
terrorismo”, mas preparar um conf li-
to armado com um adversário mili-
tar de nível equivalente, em campos
de confrontação inéditos, como o es-
paço extra-atmosférico. A escalada
de tensão é real: Michael O’Hanlon,
especialista da Brookings Institution,
chama atenção para o risco doravan-
te plausível de guerras maiores impli-
cando Pequim, que nasceriam no
contexto de crises localizadas, inclu-
sive por questões pequenas.^4 Essa as-
censão aos extremos pode parecer
uma fatalidade àqueles que conti-
nuam no primeiro nível de análise da
ordem internacional.
Se nos ativermos de fato aos con-
ceitos clássicos que servem geral-
mente para pensar o futuro nesse
campo, existem duas possibilidades
principais: o estabelecimento de um
novo equilíbrio dos blocos entre
Washington e Pequim, ou a substitui-
ção dos Estados Unidos pela China
na cúpula da hierarquia do poder
mundial no horizonte de 2050. A pri-
meira opção daria razão de maneira
póstuma a Kenneth Waltz, teórico do
equilíbrio bipolar da Guerra Fria. A
segunda nos obrigaria a nos confron-
tarmos – entre outras – com as análi-
ses pessimistas de Robert Gilpin, teó-
rico da estabilidade hegemônica, ou
de Charles Doran, pensador dos ci-
clos de poder, que sugerem que o bi-
polarismo é apenas um unipolaris-
mo atrasado e que a passagem de
controle hegemônico raramente se
efetua sem uma guerra geral.
Ambos os cenários convêm muito
bem para os defensores do “libera-
lismo hegemônico”.^5 Entre os diver-
sos think tanks que apoiam a “chapa”
Biden-Harris, o Council of Foreign
Relations (CFR) é sem dúvida o re-
presentante histórico mais emble-
mático dessa abordagem. Em uma
obra recente, cujo título denota am-
bições analíticas comedidas (O
mundo: uma breve introdução), seu
atual presidente, Richard Haass,
propõe responder aos novos desafios
por meio de receitas que retornam


mais ou menos àquelas que Henry
Luce preconizava em 1941 no artigo
emblemático que definia a missão
do “século norte-americano”. “Os
países do mundo”, diagnostica
Haass – também autor de livros de
gestão –, “desejam encontrar parcei-
ros. É evidente que os parceiros de-
vem compartilhar os mesmos valo-
res. [...] Isso pode não corresponder à
imagem que as pessoas têm do mun-
do e da ação coletiva – a abordagem
do ‘tudo ou nada’ sugerida pelas Na-
ções Unidas. Devemos cada vez mais
pensar na maneira de forjar o que
chamo de coalizões de atores volun-
tários, capazes e pertinentes, para
enfrentar desafios peculiares.”^6
Ao sugerir que a ordem internacio-
nal liberal, da qual deseja o retorno, é
melhor que as abordagens da ONU fa-
dadas ao fracasso, Haass, apoiador
fervoroso da candidatura de Biden,
pensa, sem dúvida, em demonstrar
seu pragmatismo e seu realismo. O
resultado é, no entanto, problemáti-
co. Em sentido próprio, e contraria-
mente ao que ele detalha, as Nações
Unidas têm menos uma abordagem
do “tudo ou nada” do que uma abor-
dagem do todos ou nada. É por ter sido
construída – ao menos teoricamente


  • sobre o princípio da igualdade sobe-
    rana dos Estados que a ONU repre-
    senta o único fórum interpaíses legí-
    timo no plano internacional, ao
    contrário das alianças de defesa cole-
    tiva geograficamente limitadas, co-
    mo a Organização do Tratado do
    Atlântico Norte (Otan), ou das “coali-
    zões de voluntários” (coalition of the
    willing), cuja eficácia instrumental
    produziu resultados conhecidos nes-
    ses vinte últimos anos no Iraque, no
    Afeganistão e na Líbia.
    Essa legitimidade da ONU não é
    tão substituível, visto que a cena
    mundial vive nesse momento um du-
    plo movimento multipolar e poliár-
    quico, que parece escapar ao autor,
    além do próprio fato de que ele não
    hesita em ressuscitar certos concei-
    tos tão datados quanto divisores de
    opiniões, como o slogan de uma
    “coalizão de voluntários”, usado pela
    segunda administração Bush. A lógi-
    ca do “clube de parceiros” defendida
    por Haass ilustra sobretudo a escle-
    rose continuísta que afeta o conceito
    de ordem liberal democrática, sem-
    pre no aguardo de uma renovação
    real. Michael Williams, entre outros,
    expôs bem o problema principal des-
    sa abordagem: sua incapacidade de
    pensar o conceito de mudança social
    na ordem internacional.^7


A AMÉRICA “ANTES” OU “DEPOIS”?
O conceito do multilateralismo, utili-
zado de maneira insistente pelos de-
fensores de uma ordem liberal demo-
crática mais representativa, poderia

constituir uma resposta às limita-
ções dessa tese na era multipolar?
Emmanuel Macron sugere isso quan-
do denuncia o estado de “morte cere-
bral” da Otan, onde todo debate seria
asfixiado por alguns Estados-mem-
bros, ou enquanto tenta, evitando
qualquer julgamento com ingenuida-
de, defender uma abordagem mais
interacional com a Rússia. Mas o
multilateralismo invocado pelo pre-
sidente francês possui uma dupla na-
tureza. Exprime por um lado uma di-
plomacia inclusiva e participativa,
respeitosa quanto às soberanias e
suas declinações culturais, mas tra-
duz também, para alguns, uma
orientação geral que postula uma su-
peração crescente das prerrogativas
estatais em benefício de um ideal de
governança global.
A primeira dimensão do multila-
teralismo se impõe em nível interna-
cional de maneira relativamente
consensual, pois, longe de questionar
o princípio da soberania, pelo con-
trário, apoia-se nele para funcionar.
A segunda dimensão é, por outro la-
do, contestada por um número cres-
cente de Estados, para os quais a go-
vernança deve ser reservada ao
terceiro nível da ordem internacional
(as temáticas de cunho universal), ao
passo que os governos devem ser dei-
xados livres, com base em um pro-
cesso de deliberação nacional legíti-
mo, para escolher seu destino
geopolítico no primeiro e no segundo
nível (relações com as grandes potên-
cias, configurações regionais), de
acordo com os valores de que a ONU


  • e nenhuma outra organização – tem
    o dever de ref letir a diversidade e de
    organizar o diálogo.
    Esse é um dos principais proble-
    mas do discurso liberal-hegemônico
    que estrutura a base da ordem inter-
    nacional que Biden se propõe a res-
    taurar. Ainda que o slogan “América
    em primeiro lugar” aparentemente
    pertença a seu adversário republica-
    no, os autores do programa se apro-
    priaram dele sem perceber. Esse “em
    primeiro lugar” democrata não é ex-
    presso em termos de prioridade, mas
    de posição. Não engloba de fato uma
    América colocada “antes de quem
    quer que seja”, como reivindica crua-
    mente a visão autocentrada de Do-
    nald Trump, mas posiciona a América
    “diante de quem quer que seja”, po-
    der-se-ia dizer, em razão de “caber
    aos Estados Unidos tomar as rédeas”,
    como escreve Biden. Segundo ele,
    “nenhuma outra nação tem essa ca-
    pacidade”, simplesmente porque “ne-
    nhuma foi construída sobre esse ideal
    (de liberdade)”. Tal visão – a ordem
    norte-americana ou o caos – vem de
    uma ideia expressa nos anos 2000 pe-
    lo subsecretário de Estado norte-a-
    mericano Strobe Talbott, para quem,


“em especial neste século, os Estados
Unidos, de maneira explícita e persis-
tente, buscaram promover ao mesmo
tempo seu interesse nacional e seus
valores nacionais, sem ver contradi-
ção entre esses dois objetivos”.^8 Isso
supõe que valores nacionais, oriun-
dos de uma experiência histórica es-
pecífica, poderiam ser aplicados de
modo universal.
Esse excepcionalismo extroverti-
do não percebe o disparate crescente
entre o papel que os Estados Unidos
se atribuem e o poder real do qual
dispõem. Está em via de se tornar
quase inaudível. Na equação das re-
voluções internacionais contempo-
râneas, a exigência de reconheci-
mento está de fato se impondo. Essa
virada “identitária” não parou de se
amplificar de alguns anos para cá,
seja na China, na Índia, na Rússia ou
mesmo no cerne dos bastiões da or-
dem democrática ocidental, Estados
Unidos e países europeus inclusos.
Após ter vulgarizado o conceito de
“fim da história” pouco tempo depois
da Guerra Fria, Francis Fukuyama
diagnostica desde então seu retorno,
publicando um reexame com o título
de Identity: The Demand for Dignity
and the Politics of Resentment [Identi-
dade: a exigência de dignidade e a po-
lítica do ressentimento].^9 Embora se
posicione contra o que descreve com
razão como um “novo tribalismo”,
não deixa de associar a noção de
identidade à necessidade de dignida-
de e de reconhecimento das comuni-
dades políticas organizadas (estatais
ou não), seja em continentes “novos”
ou no “Ocidente”. Constata, além dis-
so, a força das dinâmicas de frag-
mentação social em um mundo eco-
nomicamente globalizado.
A consideração dessas novas di-
nâmicas sociais que remodelam a or-
dem internacional não aparece no
programa dos dois principais parti-
dos norte-americanos. É legítimo,
para dizer a verdade, interrogar-se se
sequer existe um programa diplomá-
tico no lado republicano. Seja na teo-
ria ou na prática, tanto um lado como
o outro se concentram no primeiro
nível da ordem internacional, o da
competição de poder hierárquico. Em
diferentes palavras, eles se conten-
tam em transpor as consequências
para o segundo nível, o das configu-
rações geopolíticas e geoeconômicas
regionais. Daí vem o interesse reno-
vado de seus respectivos teóricos pela
questão das alianças (em “reconstru-
ção”, o que evita repensá-las). Na pró-
xima ordem internacional, ordem es-
sa que nenhum dos lados saberia
deixar aos cuidados da ONU, os Esta-
dos Unidos não poderiam ter outra
função senão a de leaders de um lado


  • “o Ocidente”, para o secretário de
    Estado, Mike Pompeo; o “mundo li-


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